segunda-feira, 8 de fevereiro de 2021

Coração na lua

O dia amanhece nublado. Será só aqui ou também no resto do mundo? Aqui é um mundo. À parte do outro. 
Já nem me lembro bem o ano exacto em que, depois de algumas voltas ao sol e por esse país fora, cheguei a Sintra e senti que finalmente tinha chegado a casa. 
Também não me lembro, tampouco sei explicar porque é que esta serra imprevisível, microclimatica e tantas vezes sombria me agarrou o coração. 
Pode ser a beleza. Sou muito sensível às coisas bonitas. Também pode ser a poesia. Sintra é um poema em cada canto. Pode ser a vista no silêncio da Peninha depois da visita obrigatória a São Saturnino e a luz que entra das aberturas das janelas sem vidros.
Podem ser os corredores estreitos e labirínticos dos Capuchos. As tuias gigantes dos jardins. As cores da Pena e a história gravada nas pedras. Os mistérios da Regaleira, os amigos e as memórias da Casa do Fauno. As caminhadas pelos bosques que parecem encantados em busca de criaturas míticas e de mim. A loucura viciante do excesso de açúcar nos suspiros com doce de ovos da Periquita. As promessas nos caminhos de Monserrate. As lendas. A estrada da rainha a caminho de Colares. Os plátanos alinhados da Várzea. O caminho pelo eléctrico a vislumbrar a vista do mar. O som metálico da melodia persistente sobre o carris. 
Já escrevi sobre sensações de "casa" noutra altura. É fácil voltar aí no contexto actual em que parece que nos estão a arrancar as raízes ou a terra a que elas se prendiam. Escrevi que cozinhar é regresso. 
Foi em Sintra que me descobri entre os tachos, panelas, frigideiras, fornos e formas. Foi aqui que o meu percurso foi fluindo para a vontade de de fazer comida saudável. Sintra deu-me um propósito de vida. Não quero apenas cozinhar, quero elevar o que faço à categoria de pequenos passos para um mundo melhor. 
Na rádio tocam os Pearl Jam, "Just breath". Aproveito e respiro fundo. Sinto o alívio na expiração. 
A voz do Eddie Vedder faz-me mais ficar sem ar, penso eu a sorrir e a revirar os olhos sonhadores como se ainda fosse uma teenager com laivos de groupie. 
Mais um bocadinho e queimava o leite de coco que estou a cozer com agar agar para lhe dar a textura que preciso para um cheesecake só com ingredientes vegetais. Gosto deste desafio de procurar o alternativo do instituído. Raspo a vagem de baunilha para o tacho e vou mexendo. Quem disse que os bolos só sabem bem com ovos e açúcar e manteiga ou natas? Eu quero dizer o contrário. E provar. Provar a quem não acredita, não o provar de tirar uma colherada, como quem não está a ser visto. Não estou. Sou só eu e o Eddie e a Spooky que está lá fora a ver se caça algum pássaro. Ai dela! Tem comida na taça. Os pássaros são para voar, não para fazer oferendas a humanos. Ainda estou em modo de pousar devagarinho neste regresso. Ou se calhar nem dei realmente conta de alguma vez ter ido. É possível que o corpo vá e parte do coração fique onde sente que pertence, para que um dia, quando for altura se possam voltar a fundir. Agora vou fundir os morangos desidratados neste recheio e enquanto arrefece, vou sentar-me a cheirar o mar e a olhar para a minha Serra. Depois logo se vê.
Sintra é um encontro entre o que somos e o que sonhamos ser.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2021

Mute



Não sei se deva sentir-me mal por apreciar as ruas vazias e o silêncio do ar. Há dias em que tenho um cansaço tão grande dos ruídos constantes que só me apetecia ter um comando de pausa de som no mundo e ouvir apenas os pássaros, o mar e a minha voz interior. 
- Que faço hoje para o almoço? - pergunto eu a essa voz que me ignora ou que responde tão baixinho que quase nem ouço. 
Abro o frigorífico em busca de respostas mais eficientes. Tomámos o pequeno almoço tarde, nem há grande fome. Talvez faça apenas uma sanduíche. - Que achas, voz interior? 
Tenho uma memória muito vaga, de em pequenina, ouvir uma conversa da minha mãe já não sei com quem, em que ela dizia - "Dou-te um conselho..." . 
Lembro-me de achar que estes conselhos eram um presente, uma coisa preciosa qualquer, afinal a minha mãe dava-os às pessoas. 
E o que vem das mães deve ser precioso e único. Entretanto crescemos assim, a escutar preciosos conselhos que nos vão sendo aparentemente úteis nas encruzilhadas da vida mas algures vamos deixando de conseguir ouvir o nosso próprio som. É normal ter dúvidas e pedir aconselhamento, não nego isso, mas as nossas decisões do que nos serve ou não, devem ser sempre com base no nosso próprio som, pelo menos quando já somos crescidos e já vivemos umas décadas de encruzilhadas e dúvidas e conselhos de mães e companhias. 
Demorou-me algum tempo a perceber que há uma diferença no que tomo como realmente meu e o que herdei desses aconselhamentos por esse mundo fora.  
Uns dizem -" A mudança faz parte da vida." E outros acham que -"As pessoas nunca mudam". 
Ou ainda -"Deves ponderar sempre os prós e os contras." Mas há quem pense que  - "O importante é ouvir o coração". 
E também dizem que  -"A vida são as nossas escolhas". Mas há quem acredite que -"O nosso destino está traçado no matter what". 
E a minha favorita -"Rir é o melhor remédio". Mas a minha mãe também diz -"Não se brinca com coisas sérias". 
Shhhhiuu! Pausa nos ruídos exteriores que  impedem de conseguir ouvir afinal que som é só nosso! 
Confesso, estou tentar implementar rotinas saudáveis e higiénicas de auscultação de sons interiores que não sejam a barriga a dar horas.
Tenho aquela necessidade de pequeno almoço, almoço e jantar, com uns lanchezinhos pelo meio e umas ceias a terminar e esqueço ou desvalorizo, as refeições da alma que me devolvem a capacidade de ouvir esse silêncio íntimo, único e tão esclarecedor. 
É o que faz ter sempre o foco no alimentar e cuidar os outros, enquanto ignoro a minha fome de nutrição da que não me engorda o corpo e me enriquece a alma.
Este tempo de pausa veio aconselhar-me a corrigir isso. As rotinas de refeições para a alma, devem ser intercaladas com as do corpo. Se consigo escrever receitas, também consigo rescrever-me, certamente.
E talvez a minha voz ou se calhar o meu estômago a dar horas que já é quase hora do lanche, concordam harmonicamente na sanduíche de pasta de grão com cebola, maionese e salsa. E tudo parece simples e perfeito numa só decisão autónoma.

Coração na lua

O dia amanhece nublado. Será só aqui ou também no resto do mundo? Aqui é um mundo. À parte do outro.  Já nem me lembro bem o ano exacto em q...