Quando eu era miúda, não havia cá computadores nem telemóveis ou tablets, havia televisão e mesmo assim era tão limitada que nos enchia de aborrecimento. Passava-se muito mais tempo na rua a fazer nada ou quase nada que em casa a ver a Heidi e o Marco ou o Engenheiro Sousa Rebelo e o Vasco Granja.
Na rua da casa dos meus avós paternos, o Gregório e a Miquelina, era comum brincar-se lá fora. Eu e as meninas da rua passámos pela fase de fazer de Doce. As Doce, para quem não sabe são a primeira Girls Band que me lembro. Apareceram nos anos oitenta. Quais Spice Girls! Cada uma de nós cantava e personificava a sua favorita.
Eu era a Teresa Miguel, a ruiva de olhos bonitos. Vestíamos as roupas que a Francelina nos trazia da América e de microfones imaginários “actuávamos” na entrada da casa da avó da Anabela, que era envidraçada - para o “público nos ver- e logo a primeira da rua Gil Eanes. Às vezes estávamos nós em plena “Uma da manhã” quando se ouvia o apito das fábricas a anunciar o meio dia e lá aparecia o meu pai a tocar a campainha da bicicleta ou a fazer o seu inconfundível assobio a avisar que chegava para o almoço.
Nós morávamos na parte de cima e os meus avós em baixo. Ao lado havia um terreno que o meu pai no pouco tempo livre que tinha, cultivava e retirava legumes para a nossa alimentação. De tudo, entre batatas, tomates, alfaces, couves, etc. Mas eram lá para maio, as favas que nos enchiam a barriga e sobretudo a alma.
As favas do meu pai eram mesmo as melhores do mundo…
No dia a dia era a minha mãe que cozinhava, sem grande paixão, acho. Quatro filhos, um emprego na escola primária como contínua a cuidar de outros filhos que ainda hoje lhe falam como se fosse a mãe. Também tomava conta da avó Miquelina de quem só me lembro quando já não conseguia fazer a sua famosa sopa de feijão com massa. Sofrera uma trombose uns anos antes e ficou imobilizada a necessitar de todo o tipo de cuidados, sempre com muitos mimos do meu avô e rebuçados do Doutor Bayard que ele se fartava de me ralhar quando lhos roubava à socapa, mas adiante que estas histórias não se querem tristes.
Aos fins de semana quem cozinhava era o meu pai e nós ansiavamos pelas Favas dele. Eram da primavera as melhores, que preparava com um ramo de cheiros onde predominava a hortelã que colhia lá da horta.
Do meu pai há tantas histórias que quase dava para escrever todos os livros da biblioteca itinerante. De carácter forte e de coração mole, tinha jeito para quase tudo, mas muito, muito mesmo para os tachos e até para os doces. Talvez lhe tenha herdado essa veia mesmo só percebendo já muito crescida. Também tinha jeito para nos fazer rir e muito para improvisar. Improvisava nas rimas e nas histórias que nos contava e algumas faziam chorar as pedras da calçada, como a que cantava do menino que cosia as folhas da árvore aos ramos porque tinha ouvido o médico dizer à mãe que o pai não ia chegar ao outono. Improvisava nas coisas ligeiras porque na vida era muito organizado e metódico, talvez também tenha herdado esse método juntamente com o mau génio e a falta de jeito para disfarçar o desagrado quando sou contrariada.
Lá me contrariou e bem, quando se foi embora cedo de mais, embora continue a inspirar-me em quase tudo o que faço.
Às vezes sinto-o muito presente. E sem conseguir explicar como ou porquê, mais até do que quando o via ou ouvia. Talvez eu esteja agora mais atenta aquelas coisas que não se explicam. É assim em detalhes como nos graves da minha voz ou nos melros que me aparecem em todo o lado e que me parecem sempre trazer sinais ou mensagens subliminares que o sinto quase sempre comigo.