quarta-feira, 29 de janeiro de 2020

Vamos à Fava

Quando eu era miúda, não havia cá computadores nem telemóveis ou tablets, havia televisão e mesmo assim era tão limitada que nos enchia de aborrecimento. Passava-se muito mais tempo na rua a fazer nada ou quase nada que em casa a ver a Heidi e o Marco ou o Engenheiro Sousa Rebelo e o Vasco Granja.
Na rua da casa dos meus avós paternos, o Gregório e a Miquelina, era comum brincar-se lá fora. Eu e as meninas da rua passámos pela  fase de fazer de Doce. As Doce, para quem não sabe são  a primeira Girls Band que me lembro. Apareceram nos anos oitenta. Quais Spice Girls! Cada uma de nós cantava e personificava a sua favorita. 
Eu era a Teresa Miguel, a ruiva de olhos bonitos. Vestíamos as roupas que a Francelina nos trazia da América e de microfones imaginários “actuávamos” na entrada da casa da avó da Anabela, que era envidraçada - para o “público nos ver- e logo a primeira da rua Gil Eanes. Às vezes estávamos nós em plena “Uma da manhã” quando se ouvia o apito das fábricas a anunciar o meio dia e lá aparecia o meu pai a tocar a campainha da bicicleta ou a fazer o seu inconfundível assobio a avisar que chegava para o almoço.
Nós morávamos na parte de cima e os meus avós em baixo. Ao lado havia um terreno que o meu pai no pouco tempo livre que tinha, cultivava e retirava legumes para a nossa alimentação. De tudo, entre batatas, tomates, alfaces, couves, etc. Mas eram lá para maio, as favas que nos enchiam a barriga e  sobretudo a alma. 
As favas do meu pai eram mesmo as melhores do mundo… 
No dia a dia era a minha mãe que cozinhava, sem grande paixão, acho. Quatro filhos, um emprego na escola primária como contínua a cuidar de outros filhos que ainda hoje lhe falam como se fosse a mãe. Também tomava conta da avó Miquelina de quem só me lembro quando já não conseguia fazer a sua famosa sopa de feijão com massa. Sofrera uma trombose uns anos antes e ficou imobilizada a necessitar de todo o tipo de cuidados, sempre com muitos mimos do meu avô e rebuçados do Doutor Bayard que ele se fartava de me ralhar quando lhos roubava à socapa, mas adiante que estas histórias não se querem tristes. 
Aos fins de semana quem cozinhava era o meu pai e nós ansiavamos pelas Favas dele. Eram da primavera as melhores, que preparava com um ramo de cheiros onde predominava a hortelã que colhia lá da horta. 
Do meu pai há tantas histórias que quase dava para escrever todos os livros da biblioteca itinerante. De carácter forte e de coração mole, tinha jeito para quase tudo, mas muito, muito mesmo para os tachos e até para os doces. Talvez lhe tenha herdado essa veia mesmo só percebendo já muito crescida. Também tinha jeito para nos fazer rir e muito para improvisar. Improvisava nas rimas e nas histórias que nos contava e algumas faziam chorar as pedras da calçada, como a que cantava do menino que cosia as folhas da árvore aos ramos porque tinha ouvido o médico dizer à mãe que o pai não ia chegar ao outono. Improvisava nas coisas ligeiras porque na vida era muito organizado e metódico, talvez também tenha herdado esse método juntamente com o mau génio e a falta de jeito para disfarçar o desagrado quando sou contrariada. 
Lá me contrariou e bem, quando se foi embora cedo de mais, embora continue a inspirar-me em quase tudo o que faço. 
Às vezes sinto-o muito presente. E sem conseguir explicar como ou porquê, mais até do que quando o via ou ouvia. Talvez eu esteja agora mais atenta aquelas coisas que não se explicam. É assim em detalhes como nos graves da minha voz ou nos melros que me aparecem em todo o lado e que me parecem sempre trazer sinais ou mensagens subliminares que o sinto quase sempre comigo.

Heavengelina







A minha tia Evangelina era uma daquelas tias avós que todos os sobrinhos netos sonham ter. Parece que a estou a ver. Armada de guloseimas na algibeira, junto ao lenço de assoar bordado por ela e das anedotas do Bocage que parecia sacar do mesmo sítio.

Cabelo todo branquinho, sempre no lugar, caracóis ligeiros que ela fazia aparecer dos rolos que cuidadosamente prendia à cabeça. Cheirava a uma mistura de Alfazema e naftalina a dar a ideia que era uma peça guardada e por usar exposta numa vitrine. Solteira e sem filhos, dedicava-se a nós com o carinho que teria de certeza dado aos dela.

Em tempos tinha trabalhado em Lisboa com a minha avó, numa loja de lingerie lá para a Rua do Ouro que era do tio Manel pequeno. Pequeno, porque também havia o grande. Dois Maneis irmãos, um Domingos e um Joaquim, como o pai.

Era magrinha, elegante e cosmopolita, mas daquela época em que parecia que quase tudo o que era da cidade tinha mais classe. Muito prendada, com um ar de quem preparava eternamente um enxoval, lembro-me das mãos delicadas com que bordava um lençol de linho ou remendava as meias esburacadas lá da casa, nas temporadas que passava connosco.

Nunca soube porque ficara para tia.

Eram sete irmãos ao todo, os filhos dos meus bisavós maternos Joaquim e Maria Amélia, quatro rapazes e três meninas, vindos lá da dureza e escassez do seco Alentejo interior.

Os meus avós, o Amílcar e a Maria do Rosário, conheceram-se em Lisboa, estava ele na tropa e ela na rua do Ouro na loja do Manel pequeno. Apaixonaram-se e ele levou-a para Safara, onde casaram e tiveram família. Ele com o ofício de sapateiro e do álcool, ela a trabalhar a terra e os quatro filhos, o Mário, a Catarina, a Maria Amélia e a Ausenda, a minha mãe.

Além da minha avó, a Maria do Rosário e da Evangelina, ainda havia a Ana, a mais velha, mais gasta do campo. Lembro-me das mãos muito magras de ossos à vista, como se nunca parasse de trabalhar nem para dormir, mas sempre a sorrir. Era assim a Ti Ana. Com uma doçura quase tão grande no trato como na inesquecível compota de Tomate com Canela, das colheitas lá da Fazenda do genro, o primo Adelino, no Vale da Maia, para os lados de Vila Moreira, no Ribatejo.

Daqui também vinham os melhores figos que já comi, colhidos da arvore na hora, sempre grandes barrigadas.

Os figos têm aquelas peculiaridades únicas que mais nenhuma fruta tem, juntam a beleza do interior à rugosidade macia da textura e do sabor. E que sabor!

As pessoas se fossem frutas eram mais fáceis de se compreender. Eu, se fosse uma fruta gostava de ser um figo. Ar simples e tosco, interior terno e rugoso e sabor delicado mas intenso. Nos dias em que não seria um limão, que apesar de amargo é alcalino. Porque em tudo e todos há certamente um lado positivo.



terça-feira, 21 de janeiro de 2020

Era uma Vez



Quando somos crianças, os adultos insistem imenso que saibamos o que vamos ser quando crescermos… como se o que somos nessa altura não nos bastasse e sobrasse tanto. 

Eu quis ser montes de coisas, talvez para garantir que alguma haveria de corresponder às expectativas que tinham para mim. 

Teria por ai uns dez anos e sonhava em ser cientista, obcecada por um microscópio que apareceu na montra da papelaria da Dona Rosa e me encantava numa crise de saturação de Nancys e Tuxas que já me faziam gastar tempo demais no que ainda era muito cedo.
Acho que nessa fase acreditava que ia mudar o mundo com uma visão mais aprofundada -literalmente- do que me rodeava. Pobres moscas que serviram de cobaias nas minhas lamelas de plásticoMas tudo em nome da ciência e das grandes descobertas, claro. 

Nesta época, as papelarias guardavam verdadeiros tesouros que enchiam os sonhos de qualquer criança que como eu, passava o ano a ansiar pelo aniversario ou pelo Natal, que no meu caso era quase sempre um dois em um. Quis a fortuna que nascesse a uma semana do menino Jesus.  
Tinha que se esperar para receber prendas das mesmo boas e também tinha que se as merecer.

Agora me lembro que deve ter sido no meio dos tesouros da Dona Rosa e numa das situações em que apanhava a minha mãe mais disponível de carteira e de vontade de me satisfazer caprichos fora das festividades, que recebi um bloco de papel cheio de bonecos e roupas destacáveis com montes de acessórios para todas as situações e estações, tão versátil e criativo que me deixava o cérebro a fervilhar com vontade de ser o que vim a ser mais tarde- estilista. 

Antes disso, ainda quis frequentar um qualquer colégio interno, influenciada pelas histórias das gémeas da Enid Blyton, dos livros da biblioteca itinerante, que demorava sempre demais a passar. Sonhava com uniformes colegiais, em ser detective para resolver mistérios divertidos com as minhas amigas enquanto chupávamos caramelos de hortelã pimenta.
   
Mas, definitivamente, no meio de todas as minhas aspirações a crescida, mesmo coleccionando religiosamente as panelinhas e serviços de chá miniatura das lojas do jardim das termas da Cúria, que recebia de mérito de passagem de ano escolar, nunca, em tempo algum, entrou nos meus projectos de ser alguma coisa, ser aquilo que sou hoje, uma afortunada cozinheira compulsiva. 


Eu explico o compulsivo.  
Todos nós temos as nossas profissões, mas alguns têm a sorte de gostar tanto do que fazem que sentem falta quando estão parados. Eu sou uma dessas pessoas.
Não sou workacholic, não é porque não tenho vida. É porque a fazer o que faço me sinto mais viva.  
É mais forte que eu a necessidade de fazer comida e alimentar pessoas. Há um processo qualquer muito pessoal em que parece que entro numa bolha invisível e fico a flutuar com os ingredientes e é como se houvesse um género que comunicação telepática ou simbiose, numa espécie de bailado que só eu vejo.
  
Quem me ouvir a falar, parece que sou digna de uma constelação de Michelin´s -não sou- nem ambiciono ser. Não tenho qualquer mestria nem domino nenhuma técnica além da paixão e do prazer de misturar os cheiros, as texturas e os sabores, o resto é obra do acaso ou da sorte, da boa fé e confiança de quem prova e me incentiva a continuar. 

Não sequer histórias de grandes tradições gastronómicas na família.
Lembro-me de nos sentarmos à mesa a descascar quilos de favas que o meu pai semeava, para guardar na arca congeladora para irmos degustando ao longo do ano, mas aquela coisa de reunir as mulheres à volta do fogão e de aromas inebriantes e poesia no ar, se aconteceu, passou-me totalmente ao lado. 

Venho de famílias maioritariamente femininas, e todas estas mulheres são incrivelmente especiais ou é assim que eu as vejo. O que é nosso é quase sempre especial, mas eu lembro detalhes deliciosos das minhas tias, das minhas avós, da minha mãe, da minha sogra e até das minhas irmãs e sobrinhas, um batalhão de mulheres bonitas, sensíveis, corajosas e resistentes. Todas cozinhavam e cozinham, mas nenhuma sofre desta minha compulsão.
  
Prefiro a pastelaria. Comecei por aí. Foram os cheiros. O açúcar a queimar ou o chocolate a derreter, os frutos vermelhos no forno.

Depois veio a vontade de fazer diferente. De conseguir encontrar sabores e abrir apetites de uma forma mais saudável, proporcionar a quem tem restrições alimentares, por razões de dieta ou opção de vida, a possibilidade de comer uma sobremesa, celebrar um aniversário, usufruir de comida saborosa sem peso de consciência. E nasceu a vertente da pastelaria alternativa.
  
Os outros cheiros e texturas apareceram depois, numa vontade gradual, talvez com tentativas de recuperar sabores perdidos na memória. A comida tem essa coisa incrível de nos fazer viajar pelas memórias, e a paixão foi-se alastrando até aos coentros e às cebolas, grelos, batatas doces e afins.
  
Também há umas receitas de referencia na minha família, misturadas com histórias,  porque uma refeição é muito mais que uma necessidade fisiológica, é todo um ritual onde elas se contam ou se vivem, e é impossível dissociar histórias e comida. 


Coração na lua

O dia amanhece nublado. Será só aqui ou também no resto do mundo? Aqui é um mundo. À parte do outro.  Já nem me lembro bem o ano exacto em q...