terça-feira, 21 de janeiro de 2020

Era uma Vez



Quando somos crianças, os adultos insistem imenso que saibamos o que vamos ser quando crescermos… como se o que somos nessa altura não nos bastasse e sobrasse tanto. 

Eu quis ser montes de coisas, talvez para garantir que alguma haveria de corresponder às expectativas que tinham para mim. 

Teria por ai uns dez anos e sonhava em ser cientista, obcecada por um microscópio que apareceu na montra da papelaria da Dona Rosa e me encantava numa crise de saturação de Nancys e Tuxas que já me faziam gastar tempo demais no que ainda era muito cedo.
Acho que nessa fase acreditava que ia mudar o mundo com uma visão mais aprofundada -literalmente- do que me rodeava. Pobres moscas que serviram de cobaias nas minhas lamelas de plásticoMas tudo em nome da ciência e das grandes descobertas, claro. 

Nesta época, as papelarias guardavam verdadeiros tesouros que enchiam os sonhos de qualquer criança que como eu, passava o ano a ansiar pelo aniversario ou pelo Natal, que no meu caso era quase sempre um dois em um. Quis a fortuna que nascesse a uma semana do menino Jesus.  
Tinha que se esperar para receber prendas das mesmo boas e também tinha que se as merecer.

Agora me lembro que deve ter sido no meio dos tesouros da Dona Rosa e numa das situações em que apanhava a minha mãe mais disponível de carteira e de vontade de me satisfazer caprichos fora das festividades, que recebi um bloco de papel cheio de bonecos e roupas destacáveis com montes de acessórios para todas as situações e estações, tão versátil e criativo que me deixava o cérebro a fervilhar com vontade de ser o que vim a ser mais tarde- estilista. 

Antes disso, ainda quis frequentar um qualquer colégio interno, influenciada pelas histórias das gémeas da Enid Blyton, dos livros da biblioteca itinerante, que demorava sempre demais a passar. Sonhava com uniformes colegiais, em ser detective para resolver mistérios divertidos com as minhas amigas enquanto chupávamos caramelos de hortelã pimenta.
   
Mas, definitivamente, no meio de todas as minhas aspirações a crescida, mesmo coleccionando religiosamente as panelinhas e serviços de chá miniatura das lojas do jardim das termas da Cúria, que recebia de mérito de passagem de ano escolar, nunca, em tempo algum, entrou nos meus projectos de ser alguma coisa, ser aquilo que sou hoje, uma afortunada cozinheira compulsiva. 


Eu explico o compulsivo.  
Todos nós temos as nossas profissões, mas alguns têm a sorte de gostar tanto do que fazem que sentem falta quando estão parados. Eu sou uma dessas pessoas.
Não sou workacholic, não é porque não tenho vida. É porque a fazer o que faço me sinto mais viva.  
É mais forte que eu a necessidade de fazer comida e alimentar pessoas. Há um processo qualquer muito pessoal em que parece que entro numa bolha invisível e fico a flutuar com os ingredientes e é como se houvesse um género que comunicação telepática ou simbiose, numa espécie de bailado que só eu vejo.
  
Quem me ouvir a falar, parece que sou digna de uma constelação de Michelin´s -não sou- nem ambiciono ser. Não tenho qualquer mestria nem domino nenhuma técnica além da paixão e do prazer de misturar os cheiros, as texturas e os sabores, o resto é obra do acaso ou da sorte, da boa fé e confiança de quem prova e me incentiva a continuar. 

Não sequer histórias de grandes tradições gastronómicas na família.
Lembro-me de nos sentarmos à mesa a descascar quilos de favas que o meu pai semeava, para guardar na arca congeladora para irmos degustando ao longo do ano, mas aquela coisa de reunir as mulheres à volta do fogão e de aromas inebriantes e poesia no ar, se aconteceu, passou-me totalmente ao lado. 

Venho de famílias maioritariamente femininas, e todas estas mulheres são incrivelmente especiais ou é assim que eu as vejo. O que é nosso é quase sempre especial, mas eu lembro detalhes deliciosos das minhas tias, das minhas avós, da minha mãe, da minha sogra e até das minhas irmãs e sobrinhas, um batalhão de mulheres bonitas, sensíveis, corajosas e resistentes. Todas cozinhavam e cozinham, mas nenhuma sofre desta minha compulsão.
  
Prefiro a pastelaria. Comecei por aí. Foram os cheiros. O açúcar a queimar ou o chocolate a derreter, os frutos vermelhos no forno.

Depois veio a vontade de fazer diferente. De conseguir encontrar sabores e abrir apetites de uma forma mais saudável, proporcionar a quem tem restrições alimentares, por razões de dieta ou opção de vida, a possibilidade de comer uma sobremesa, celebrar um aniversário, usufruir de comida saborosa sem peso de consciência. E nasceu a vertente da pastelaria alternativa.
  
Os outros cheiros e texturas apareceram depois, numa vontade gradual, talvez com tentativas de recuperar sabores perdidos na memória. A comida tem essa coisa incrível de nos fazer viajar pelas memórias, e a paixão foi-se alastrando até aos coentros e às cebolas, grelos, batatas doces e afins.
  
Também há umas receitas de referencia na minha família, misturadas com histórias,  porque uma refeição é muito mais que uma necessidade fisiológica, é todo um ritual onde elas se contam ou se vivem, e é impossível dissociar histórias e comida. 


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