quarta-feira, 29 de janeiro de 2020
Heavengelina
A minha tia Evangelina era uma daquelas tias avós que todos os sobrinhos netos sonham ter. Parece que a estou a ver. Armada de guloseimas na algibeira, junto ao lenço de assoar bordado por ela e das anedotas do Bocage que parecia sacar do mesmo sítio.
Cabelo todo branquinho, sempre no lugar, caracóis ligeiros que ela fazia aparecer dos rolos que cuidadosamente prendia à cabeça. Cheirava a uma mistura de Alfazema e naftalina a dar a ideia que era uma peça guardada e por usar exposta numa vitrine. Solteira e sem filhos, dedicava-se a nós com o carinho que teria de certeza dado aos dela.
Em tempos tinha trabalhado em Lisboa com a minha avó, numa loja de lingerie lá para a Rua do Ouro que era do tio Manel pequeno. Pequeno, porque também havia o grande. Dois Maneis irmãos, um Domingos e um Joaquim, como o pai.
Era magrinha, elegante e cosmopolita, mas daquela época em que parecia que quase tudo o que era da cidade tinha mais classe. Muito prendada, com um ar de quem preparava eternamente um enxoval, lembro-me das mãos delicadas com que bordava um lençol de linho ou remendava as meias esburacadas lá da casa, nas temporadas que passava connosco.
Nunca soube porque ficara para tia.
Eram sete irmãos ao todo, os filhos dos meus bisavós maternos Joaquim e Maria Amélia, quatro rapazes e três meninas, vindos lá da dureza e escassez do seco Alentejo interior.
Os meus avós, o Amílcar e a Maria do Rosário, conheceram-se em Lisboa, estava ele na tropa e ela na rua do Ouro na loja do Manel pequeno. Apaixonaram-se e ele levou-a para Safara, onde casaram e tiveram família. Ele com o ofício de sapateiro e do álcool, ela a trabalhar a terra e os quatro filhos, o Mário, a Catarina, a Maria Amélia e a Ausenda, a minha mãe.
Além da minha avó, a Maria do Rosário e da Evangelina, ainda havia a Ana, a mais velha, mais gasta do campo. Lembro-me das mãos muito magras de ossos à vista, como se nunca parasse de trabalhar nem para dormir, mas sempre a sorrir. Era assim a Ti Ana. Com uma doçura quase tão grande no trato como na inesquecível compota de Tomate com Canela, das colheitas lá da Fazenda do genro, o primo Adelino, no Vale da Maia, para os lados de Vila Moreira, no Ribatejo.
Daqui também vinham os melhores figos que já comi, colhidos da arvore na hora, sempre grandes barrigadas.
Os figos têm aquelas peculiaridades únicas que mais nenhuma fruta tem, juntam a beleza do interior à rugosidade macia da textura e do sabor. E que sabor!
As pessoas se fossem frutas eram mais fáceis de se compreender. Eu, se fosse uma fruta gostava de ser um figo. Ar simples e tosco, interior terno e rugoso e sabor delicado mas intenso. Nos dias em que não seria um limão, que apesar de amargo é alcalino. Porque em tudo e todos há certamente um lado positivo.
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