segunda-feira, 10 de fevereiro de 2020

Dia(s)positivos de Outono no Verão

A outra metade das férias era passada na Curia. Os meus pais iam sempre umas temporadas para as termas para cuidar dos rins e nós passeávamos pelos jardins, andávamos de gaivota no rio ou atirávamos pão aos patos. Tenho memórias tão boas da Curia... Logo assim que se passa a estação dos comboios, aquela recta ladeada de enormes Cedros que vai dar de frente para os portões do jardim, passando pelo incomparável Hotel Palace. O aroma que entrava pelas janelas do carro, logo à chegada é indescritível, uma mistura de folhas e flores e sebes e lagos, o cheiro a adivinhar a paisagem num frenesim.
Era e ainda é, sempre um regresso a outra casa.
Casa, dizem que é onde está o coração. O meu coração está em pedaços, não dos partidos, mas dos divididos em vários locais. A Curia é ainda um deles e as doces memórias que tenho lembram uma casa muito quente e confortável, com lareira a fumegar e bolos e ervas aromáticas penduradas pelo tecto.
Na pensão da Dona Carlota que ainda me lembro que assim que se descia a escada para a sala de refeições já se sentia o cheiro a café quentinho daquele de cafeteira. O pão era muito especial também, tinha uma espécie de maminhas em cada ponta, dizia eu para a minha mãe. Ela servia-o sempre morninho e nós barrávamos com Primor que vinha em pacotes miniatura e papel prata com letras azuis. Tinha duas filhas, a Dona Carlota, a Nandinha e a Paula e um filho, o Toninho. O meu irmão ainda namorou, ou perto com uma das miúdas.
A caminho das termas havia uma rua antes do jardim com muitas bancas feitas para os turistas ou os habitues das termas que todos os anos lá faziam os tratamentos. Uma das minhas paragens favoritas para contemplar os brinquedos e as louças miniatura e toda uma panóplia de bens indispensáveis a quem está a crescer.
À entrada do jardim havia uma casinha em forma de cilindro que parecia um foguetão branco com riscas verdes, suponho que em tempos terá pertencido ao guarda do jardim. Não faço ideia porque razão, o objecto fascinava-me e eu insistia em abrir a porta para entrar. Ficou conhecido como a casa da ratazana, baptizada pelo meu pai para me meter algum respeito e afastar do local. Conseguiu à conta disso que eu tivesse um medo desgraçado que me afastava também do raio dos bichos, durante anos… Agora já não temo bicharada, só pessoas.
Há determinados cenários na vida que nos acompanham eternamente sem sofrerem alterações em nós, por muito que os anos os transformem. Assim, tipo filme em câmera lenta em que juntamos uma espécie de diapositivos mentais que se encaixam como um puzzle preciso naquela ideia que temos do “lugar perfeito” e intocável em nós. A Curia é assim, para mim. Há o diapositivo das enormes cadeiras verdes arredondadas no jardim, junto ao edifício das termas onde se sentavam as figuras que revíamos anualmente, próximo do lago em frente à escadaria onde eu e os meus irmãos cumpríamos religiosamente o ritual de sermos fotografados sentados por ordem cronológica.
O diapositivo dos copos espalmados nas prateleiras de vidro na buvette e até do sabor da água termal. O do cheiro do lago com os patos e o som dos pedais das gaivotas que se moviam lentamente ao ritmo das nossas pernas. As minhas quase que não lhes chegavam, se bem me lembro.
A Curia, apesar de irmos sempre em Agosto, para mim tem o cenário perfeito no outono. Bem, quase tudo é perfeito no outono, no que diz respeito a cenário. Até o desprender é bonito. É tão mais simples para as arvores deixar ir o que já não serve. A paleta de cores das folhas com aquela tonalidade nostálgica que nos faz ter vontade de começar a dispensar as tardes de praia ao sol e pensar em lareiras, mantas e chá quentinho ou castanhas assadas, Tartes de abóbora e diospiros ou Rolos de Lentilhas com Batata Doce.

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