segunda-feira, 10 de fevereiro de 2020
O destino de Amélia
Da minha avó Maria do Rosário tenho memórias das tardes em que tomava conta de nós e dos primos, do quintal com o poço e a nogueira gigante dentro do terreno da tia Eufrásia.
Eram todas tias, as velhotas; e não era porque vinham de Cascais. Era assim como se fôssemos parte de uma grande família e toda a gente tomasse conta.
A tia Eufrásia teve vários filhos, quase todos emigrantes. A Francelina, que morava lá nas Américas fazia as nossas delícias quando aparecia no verão e nos presenteava com as Wrigley’s que não havia em mais lado nenhum ou com as roupas extravagantes e muito vintage que desenvolviam já a minha tendência para vestir coisas esquisitas. E os desfiles por ali pelo quintal entre a Tia Eufrásia e a minha avó, no meio dos jarros à volta do poço? Passarela digna de qualquer moda Lisboa!
Os lanches eram diferentes e muito próprios dela. Fatias de pão com azeite e açúcar ou limonada de vinagre e o Pão de Ló, único, que cozia numa forma no bico do fogão.
Sempre de preto pesado desde que enviuvara, morava nessa altura com a minha tia Maria Amélia que tinha decidido em tempos casar com um tipo que estava na guerra do Ultramar e que tinha conhecido por correspondência, que devia ser mais ou menos como as redes sociais agora só que com menos informação e a demorar mais tempo.
A tia Melita como lhe chamamos fazia um bolo de bolacha de chorar por muito mais.
Acabou por voltar das colónias com dois filhos de baixo do braço, que criou sem pai e com a ajuda da minha avó. Estragava-os com mimos… era carninha, batatinhas e alface, dia sim, dia sim, tudo partido aos bocadinhos quando eles já tinham mais que idade de se fazerem à vida e eram mais altos que ela. Deve ter-lhes dedicado a sua existência toda. A eles e ao sofá e às novelas, quando não estava no PBX das Galerias Vitória, onde também trabalhava o meu pai e grande parte da população lá da terrinha. Também fazia trabalhos de costura. Lembro-me de a ver meio curvada no anexo onde tinha a Singer ainda das antigas, a subir bainhas ou a coser botões. Vicissitudes de mães que criam os filhos sozinhas.
As fábricas de lanifícios eram a principal fonte de emprego da população na zona e tal como os meus avós maternos, muitas famílias se fixaram ali para conseguirem trabalho.
Nas férias grandes costumávamos ir todos para a mesma praia. Todos, os meus pais e irmãos e a tia Melita com os meus primos, não as famílias todas da terrinha.
Alugávamos a casa à Dona Carmem nos tempos em que os meus pais ainda podiam, porque depois quando as despesas começaram a apertar, o tio Mário trouxe uma tenda de França, com dois quartos e avançado e até uma cozinha à parte apetrechada de fogão e frigorifico e de quase tudo o que se precisa numa cozinha de férias, mas isso foi mais para a frente.
A Dona Carmem era um mulherão de aspecto e voz, de mão à cintura de saia rodada, falava como se estivesse sempre a apregoar o peixe que vendia na lota da praça da praia da Vieira. –“Ai, amori, hoje o mar não está de bem e o mê Toino anda para lá”.
Eramos todos amoris. De sorriso gigante com traços de muito trabalho e pele morena e rija como a escama dos peixes que vendia.
Também nos alugava a barraca às riscas no areal, onde às vezes passávamos dias inteiros em rituais deliciosos que envolviam sestas a seguir ao almoço, dentro ou à sombra do toldo e barrados de creme Nivea que mais parecia manteiga fria que custava a espalhar como um raio.
Um dia, de tantas latas que a minha mãe comprava, ganhámos uma bola de borracha enorme onde sentávamos o rabiosque, segurávamos uma espécie de antenas e pulávamos duna abaixo até ao mar. Aquilo saltava que se fartava. Naquele tempo, há trinta e tal anos atrás, a extensão do areal era a perder de vista.
Nas pausas para a digestão do almoço ou na espera que o sol mais quente passasse, jogávamos ao Keims ou à bisca, liamos a bravo ou fazíamos outra coisa qualquer que nos distraísse durante a longa espera.
Os lanches eram seguidos da Bola de Berlim ou a Bolacha Americana ou o Perna de Pau, o Epá ou em dias mais generosos o Corneto de Morango.
Quando começámos a fazer campismo o cenário era mais divertido menos na parte das filas para quase tudo. Ele era a fila para o pão, a fila para o xixi, a fila para o duche, até para o de água fria que parecia que voltava tudo da praia cheio de areia e sal à mesma hora.
E depois, claro, fila para lavar as louças. Ia uma pessoa de férias para passar o tempo em filas e duches de água fria...
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