segunda-feira, 8 de fevereiro de 2021

Coração na lua

O dia amanhece nublado. Será só aqui ou também no resto do mundo? Aqui é um mundo. À parte do outro. 
Já nem me lembro bem o ano exacto em que, depois de algumas voltas ao sol e por esse país fora, cheguei a Sintra e senti que finalmente tinha chegado a casa. 
Também não me lembro, tampouco sei explicar porque é que esta serra imprevisível, microclimatica e tantas vezes sombria me agarrou o coração. 
Pode ser a beleza. Sou muito sensível às coisas bonitas. Também pode ser a poesia. Sintra é um poema em cada canto. Pode ser a vista no silêncio da Peninha depois da visita obrigatória a São Saturnino e a luz que entra das aberturas das janelas sem vidros.
Podem ser os corredores estreitos e labirínticos dos Capuchos. As tuias gigantes dos jardins. As cores da Pena e a história gravada nas pedras. Os mistérios da Regaleira, os amigos e as memórias da Casa do Fauno. As caminhadas pelos bosques que parecem encantados em busca de criaturas míticas e de mim. A loucura viciante do excesso de açúcar nos suspiros com doce de ovos da Periquita. As promessas nos caminhos de Monserrate. As lendas. A estrada da rainha a caminho de Colares. Os plátanos alinhados da Várzea. O caminho pelo eléctrico a vislumbrar a vista do mar. O som metálico da melodia persistente sobre o carris. 
Já escrevi sobre sensações de "casa" noutra altura. É fácil voltar aí no contexto actual em que parece que nos estão a arrancar as raízes ou a terra a que elas se prendiam. Escrevi que cozinhar é regresso. 
Foi em Sintra que me descobri entre os tachos, panelas, frigideiras, fornos e formas. Foi aqui que o meu percurso foi fluindo para a vontade de de fazer comida saudável. Sintra deu-me um propósito de vida. Não quero apenas cozinhar, quero elevar o que faço à categoria de pequenos passos para um mundo melhor. 
Na rádio tocam os Pearl Jam, "Just breath". Aproveito e respiro fundo. Sinto o alívio na expiração. 
A voz do Eddie Vedder faz-me mais ficar sem ar, penso eu a sorrir e a revirar os olhos sonhadores como se ainda fosse uma teenager com laivos de groupie. 
Mais um bocadinho e queimava o leite de coco que estou a cozer com agar agar para lhe dar a textura que preciso para um cheesecake só com ingredientes vegetais. Gosto deste desafio de procurar o alternativo do instituído. Raspo a vagem de baunilha para o tacho e vou mexendo. Quem disse que os bolos só sabem bem com ovos e açúcar e manteiga ou natas? Eu quero dizer o contrário. E provar. Provar a quem não acredita, não o provar de tirar uma colherada, como quem não está a ser visto. Não estou. Sou só eu e o Eddie e a Spooky que está lá fora a ver se caça algum pássaro. Ai dela! Tem comida na taça. Os pássaros são para voar, não para fazer oferendas a humanos. Ainda estou em modo de pousar devagarinho neste regresso. Ou se calhar nem dei realmente conta de alguma vez ter ido. É possível que o corpo vá e parte do coração fique onde sente que pertence, para que um dia, quando for altura se possam voltar a fundir. Agora vou fundir os morangos desidratados neste recheio e enquanto arrefece, vou sentar-me a cheirar o mar e a olhar para a minha Serra. Depois logo se vê.
Sintra é um encontro entre o que somos e o que sonhamos ser.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2021

Mute



Não sei se deva sentir-me mal por apreciar as ruas vazias e o silêncio do ar. Há dias em que tenho um cansaço tão grande dos ruídos constantes que só me apetecia ter um comando de pausa de som no mundo e ouvir apenas os pássaros, o mar e a minha voz interior. 
- Que faço hoje para o almoço? - pergunto eu a essa voz que me ignora ou que responde tão baixinho que quase nem ouço. 
Abro o frigorífico em busca de respostas mais eficientes. Tomámos o pequeno almoço tarde, nem há grande fome. Talvez faça apenas uma sanduíche. - Que achas, voz interior? 
Tenho uma memória muito vaga, de em pequenina, ouvir uma conversa da minha mãe já não sei com quem, em que ela dizia - "Dou-te um conselho..." . 
Lembro-me de achar que estes conselhos eram um presente, uma coisa preciosa qualquer, afinal a minha mãe dava-os às pessoas. 
E o que vem das mães deve ser precioso e único. Entretanto crescemos assim, a escutar preciosos conselhos que nos vão sendo aparentemente úteis nas encruzilhadas da vida mas algures vamos deixando de conseguir ouvir o nosso próprio som. É normal ter dúvidas e pedir aconselhamento, não nego isso, mas as nossas decisões do que nos serve ou não, devem ser sempre com base no nosso próprio som, pelo menos quando já somos crescidos e já vivemos umas décadas de encruzilhadas e dúvidas e conselhos de mães e companhias. 
Demorou-me algum tempo a perceber que há uma diferença no que tomo como realmente meu e o que herdei desses aconselhamentos por esse mundo fora.  
Uns dizem -" A mudança faz parte da vida." E outros acham que -"As pessoas nunca mudam". 
Ou ainda -"Deves ponderar sempre os prós e os contras." Mas há quem pense que  - "O importante é ouvir o coração". 
E também dizem que  -"A vida são as nossas escolhas". Mas há quem acredite que -"O nosso destino está traçado no matter what". 
E a minha favorita -"Rir é o melhor remédio". Mas a minha mãe também diz -"Não se brinca com coisas sérias". 
Shhhhiuu! Pausa nos ruídos exteriores que  impedem de conseguir ouvir afinal que som é só nosso! 
Confesso, estou tentar implementar rotinas saudáveis e higiénicas de auscultação de sons interiores que não sejam a barriga a dar horas.
Tenho aquela necessidade de pequeno almoço, almoço e jantar, com uns lanchezinhos pelo meio e umas ceias a terminar e esqueço ou desvalorizo, as refeições da alma que me devolvem a capacidade de ouvir esse silêncio íntimo, único e tão esclarecedor. 
É o que faz ter sempre o foco no alimentar e cuidar os outros, enquanto ignoro a minha fome de nutrição da que não me engorda o corpo e me enriquece a alma.
Este tempo de pausa veio aconselhar-me a corrigir isso. As rotinas de refeições para a alma, devem ser intercaladas com as do corpo. Se consigo escrever receitas, também consigo rescrever-me, certamente.
E talvez a minha voz ou se calhar o meu estômago a dar horas que já é quase hora do lanche, concordam harmonicamente na sanduíche de pasta de grão com cebola, maionese e salsa. E tudo parece simples e perfeito numa só decisão autónoma.

quinta-feira, 28 de janeiro de 2021

Vi(r)agem

Praia ao lado da praça a três minutos de caminhada a partir de casa, é benção.
Chegar à praça, em pleno mês de janeiro - um janeiro com peso de fim de ano - e encontrar favas, com cheiro a mar, é benção a triplicar. 
Há muitos anos atrás, o Sérgio recomendou-me um livro de um autor que aprendi a gostar muito, Malcolm Gladwell, que entre outros livros incríveis tem um que se chama -The tipping point- ou ponto de viragem. O autor explica como uma ideia, mensagem, comportamento e afins -do nada - podem provocar uma imensa mudança no todo. 
O resumo do livro termina com uma frase que só por si tem um efeito altamente catalisador, do meu modesto ponto de vista -" uma pessoa imaginativa que coloque a alavanca no sítio certo pode mudar o mundo". 
Volto à praça e ao meu momento de viragem. Vivemos dias em que sentimos essa necessidade de mudança no mundo. Eu, como nasci com esta enorme predisposição para vencer desafios, decidi mudar-me a mim também. Pode ser o sentido de responsabilidade de fazer a minha quota parte. Mas mudar custa, por dentro e por fora. E durante o tempo de transformação deste ciclo, há inevitavelmente dores metamórficas. 
Fazem parte. Também há bençãos e são elas que no meu caso trazem os pontos de viragem. 
Estou eu em enorme esforço, ainda cheia de dores físicas de carregar caixas e arrumar tralhas e com as lamentações habituais, que não está sol e tenho saudades dos abraços e que "isto" nunca mais passa, e nesta ladainha crescente, a minha consciência e se calhar a minha barriga que pede maçãs - as maçãs alegram-me sempre o espírito e reconfortam-me - obrigaram-me a despachar o Calimero em mim, tomar duche e fazer uma caminhada até à praça. 
O caminho é curto, mas sei que ainda não ia a meio, já ia a arranjar desculpas que devia ter trazido o carro para não vir carregada com o raio das maçãs. 
O cheiro do mar entra-me pelas narinas e o sussurro consciente volta - andar faz bem e é bom para o ambiente. 
Encho o peito de ar e esqueço as dores nos músculos, apesar da minha mente insistir no foco de velha do restelo até chegar às portas da praça. Construir um pensamento saudável é mais trabalhoso do que parece, isso sim, uma verdadeira mudança que nem precisa de caixas nem transportadoras. 
Nisto, tenho o meu ponto de viragem do dia em que a benção cresce e ilumina todos os cantos críticos da minha mente insuportavelmente chata - Há favas, em janeiro, na praça ao lado da praia. 

quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

Direito do avesso.


O céu está coberto de nuvens, hoje. Acho que eu também. Tinha planeado ir à praça buscar flores e dióspiros antes que acabe a época. As nuvens pesam-me e é melhor amanhecer devagarinho. Cheiro de mar é outra coisa, é verdade, mas ainda me falta o sol. 

Depois de dois dias de arrumações profundas numa tentativa de resgatar a harmonia e o equilíbrio que nos fogem quando há mudanças, o cansaço instala-se nos músculos e o corpo pede para ceder ao descanso. Não reclamo. 

A vida é assim e o caminho é sempre para a frente. Pés assentes no chão é que é mais difícil a quem acredita ter asas invisíveis, e além disso a própria palavra mudAR, pede movimento. 

Às vezes gostava que isto fosse uma linha contínua, com menos flutuações, mas provavelmente iria aborrecer-me de morte, porque como costumo dizer, a vida é como a cozinha, e nisso, ainda que respeite as regras e compreenda o que devo ou não fazer, a tendência mais forte é sempre o improviso e a intuição. Fazer o que o coração manda.

Ontem, assim que consegui encaixar o forno no lugar, ainda fiz um bolo de laranja com trigo barbela, a mando do coração e da gula, pronto. Pode faltar tudo, mas bolos, nunca! 

Como uma fatia, que sabe sempre melhor no dia a seguir. Devo ser uma das raras criaturas que prefere os bolos frios. A temperatura quente, altera-lhes o sabor. 

Faço uma cevada e sento-me a pensar no que devo fazer primeiro, arrumar os livros na estante, as roupas nas gavetas ou ir à praça cheirar as bancas e encher a cesta para me fechar na cozinha e fazer o tempo parar, enquanto tento visualizar uma varinha mágica que entretanto me arruma tudo no devido lugar. Isso é que era! 

Ainda devo estar a dormir. Ou de certo, a sonhar. O relógio dos passarinhos que já pendurei na parede chilrea as 10 da manhã e lembra-me que é preciso pensar no que fazer para o almoço. Talvez faça uma massa com grão. Também preciso de um tapete. 

Se um dia alguém me dissesse que não ia ser permitido comprar tapetes, eu ia achar que o mundo estava de pernas para o ar, e se calhar até está. Vou tentar fazer o pino para mudar a perspectiva e procurar o sentido. E a seguir vou à praça que está quase a chegar o passarinho das 11 ao relógio da cozinha.


domingo, 10 de janeiro de 2021

Dejà vu - ou - oh não, isto outra vez...

 

Não é nada fácil tentar escrever um livro com receitas quando não se seguem receitas. 
Ando há tantos anos a defender a cozinha intuitiva - fazer a olho e primar pela espontaneidade e impulso criativo, que não faço ideia de quantidades, pesos ou medidas de nada... 
Soa a dramático, eu sei.
Mas conto-vos um segredo, comigo resulta.
E eu acredito que resulta por ser assim, descomprometido, leve, inebriante, inconsequente - mas confiante e apaixonante.
Não importa o raciocínio nem a lógica, o olhar reconhece os alimentos e os utensílios de cor e o coração faz o resto. 
Sento-me a fazer o exercício mental... que raio leva o Brás de Legumes que faço todas as semanas? Vou roendo o lápis e virando os olhos em busca de respostas.
Spooky, a gata preta olha para mim fixamente, parecendo dizer-me - Com que então não tens escrito o que enfias dentro do wok, humana irresponsável? A
manha-te que preciso voltar ao meu sono de beleza. E nisto, espreguiça-se com uma enorme lata felina. 
Quem me dera ser uma gata despreocupada e poder dar-me ao luxo de dividir os dias entre a preocupação de decidir se me deito ao sol no parapeito da janela ou me estico em frente à lareira quentinha até ter fome, para depois me enrolar dengosamente às pernas de alguém que não me resista aos encantos e miaus e me alimente e faça festas. Talvez noutra vida. 
Reconstruo os passos na minha cabeça e vou passando para o papel, com um esforço digno de Ulisses em busca de Itaca e a tentar não amuar com as contrariedades.
Serão duzentos gramas de tofu? Quanto levará a minha mão cheia de salsa? Dois ou três alho-francês?
Levanto-me em negação. É melhor mas é ver se a roupa já secou que está aqui, está a chover!
Curgetes! Não sei quantas - e pimbas, levo com uma pinga de chuva que me soa mais a reprimenda - Angela Maria não podes fugir às regras! Devo ter dito um palavrão ou outro antes de sorrir e aceitar, enquanto dobrava a roupa. 
- Está bem, grande Cosmos! É por uma boa causa. Cinco receitas por dia!
Mas primeiro vou preparar o almoço, que ceder dá fome. 

sexta-feira, 8 de janeiro de 2021

Mantras

Despertei dos pensamentos graças à cebola que tinha começado a picar e que me encheu de lágrimas. Queridas cebolas... Porque nos farão chorar? Deixei-me ir. As pontas dos dedos completamente dormentes do frio deste inverno que vem mesmo a cumprir o que é. Gosto quando sinto que as estações se cumprem, mesmo que o gelo nos atravesse os ossos. Não fosse a cebola e ainda cortava um dedo. Deixo que as lágrimas caiam enquanto vou ouvindo os mantras de abundância e prosperidade. Deu-me para isto. É preciso elevar o espirito para sentir o calor e a inspiração a subir também.
"In shrim krim om kuber lakshmi kamla
Devnayae dhan karshinyae swaha" -
não é de certeza para a abundância de secreções de liquido lacrimal - dou uma gargalhada! Queridas cebolas! Também me agrada a fronteira fina entre o riso e o choro. A capacidade de transformar emoções.
Hoje quero transformar uns crepes de legumes, envolver o salteado numa massa fininha, mas fazer no forno para evitar os fritos.
Tenho de apontar quantidades desta vez para não me esquecer. Gengibre picado, cenoura em tiras, couve ripada, rebentos de soja, cogumelos, óleo de sésamo, curcuma...
Eu consigo escrever receitas! 
Há tanto da vida na cozinha!! Sei que pode parecer estranho, mas é tão fácil a analogia entre os alimentos e as pessoas e os respectivos comportamentos. E tão mais fácil intuir que medir, que se calhar é isso que me falta "lá fora". A vida deve ser intuitiva.
As pessoas devem ser como as cebolas, cheias de camadas, sob uma pele fina. Algumas fazem-nos chorar, mas também nos despertam para nos focarmos no que importa. Outras dão-nos conforto, como as maçãs Reinetas, apesar de alguma acidez.
E há as que nos fazem aquecer, as malaguetas e pimentas. As que nos derretem com as suas polpas suculentas e macias, como abraços, como as mangas e as framboesas. Os cogumelos, toscos e insipidos, mas super versáteis e cheios de capacidade de adaptação. Os citrinos, amargos, mas tão refrescantes.
No fim, na cozinha e na vida há todo um festim para saborear, crescer e alimentar. 
Eu consigo escrever receitas! Eu consigo escrever receitas! Eu consigo escrever receitas! 

domingo, 15 de novembro de 2020

Redundâncias



A casa está vazia. A mãe sozinha. Isso aflige-me. Haverá vírus maior que a solidão?

As ruas estão em silêncio. Cheira a queimadas - folhas secas misturadas com nostalgia. O fumo espalha-se pelo ar do jardim e traz vontade de laços e de abraços apertados que decido transformar em broas de batata doce. Sensações de regresso a casa, é o que se precisa. Raizes.
O tempo está agridoce, o ânimo divide-se entre a resiliência e o cansaço. Se calhar nestes dias era melhor não escrever, nem tentar juntar palavras e limitar-me aos envolventes rituais de cozinha, juntar lamúrias, nozes partidas e erva doce.
Na cozinha os pensamentos não me consomem. Raspo uma laranja. As laranjeiras por aqui estão de lotação esgotada com mais frutos que folhas, manchas luminosas e cheias de vida, no meio da paisagem bucólica e desprendida do outono. As árvores também são mães, com os seus rebentos, uns doces, outros amargos, uns de polpas macias e outros de cascas duras. No fim, somos todos ramos da mesma árvore. As mães são casa, são regresso e abraço, são colo e ombro, conforto e também confronto, às vezes.
No espelho, olho o reflexo e lembro-me todas as vezes que disse que ia ser diferente enquanto me saltam as semelhanças à flor da pele, como sinais do sol de verão.
Não devia ser permitido depois de uma vida a criar raízes e a fortalecer ramos e frutos, ficar ali num género de letargia imposta, sem ninguém a fazer companhia e já quase nada para florescer.
Junto as raspas das laranjas à batata doce assada e vou amassando. São delicadas, as pequenas broas. Pensar que já estamos quase no Natal...mais uns dias e faço mas é bolo rei, que gosto tanto!
Deixo o forno aquecer e vou fazer uma caminhada para abrir o apetite e telefonar para casa de três letrinhas apenas.
"- Boa noite, mãe. Como te sentes hoje? Amanhã levo-te broas abraço".

segunda-feira, 10 de agosto de 2020

Fé e Fado

Desde que me lembro de ser gente que há uma série de tradições que gosto de cumprir a preceito. Sem seguir cronologia a rigor e sem me alongar em listas, lembro o dia de Reis em que é obrigatório comer uma romã da qual se guardam 12 sementes na carteira, uma por cada mês, em símbolo de prosperidade e abundância.
Lá para meio do ano, a Espiga, o precioso ramo colhido que é pendurado atrás da porta até ao ano seguinte e que garante que não nos faltará o essencial.
E claro, as velas aos santos que admiro nos seus dias específicos.
Hoje é o dia de São Lourenço. Já preparei a vela.
A minha admiração requer pesquisa.
É preciso conhecer a grandiosidade que faz merecer o meu ritual. Não sou de me dedidicar só porque sim. Não tenho nenhuma veneração especial por Fátima e até cresci lá perto. A minha Senhora é a da Conceição, padroeira de Portugal. Tenho simpatia por Santa Rita de Cassia das causas impossíveis, Santiago do caminho das Estrelas e Santo Expedito das soluções urgentes.
Com Lourenço de Huesca, o Santo que me deu apelido, foi diferente. Não fui eu que o escolhi, foi ele que me escolheu a mim.
Desde adolescente que sonhava um dia morar nas Azenhas do Mar. Morei.
E mesmo hoje há parte de mim que ainda mora. São Lourenço é o padroeiro da vila. Sem querer, soube há dias que é também o santo dos cozinheiros, no mesmo dia em que descobri que algumas tradições populares da Europa meridional chamam à chuva de meteoros das Perseidas, que ocorre com maior intensidade a meados de Agosto, “Lágrimas de são Lourenço”. Por lembrarem as chamas associadas ao seu martírio.
São Lourenço passou a fazer parte das minhas devoções e hoje vou acender-lhe uma vela enquanto preparo a cacerola de grão para servir com massa ao almoço e lhe peço para olhar por mim todos os dias do meu trabalho.
Que assim seja. 

segunda-feira, 3 de agosto de 2020

Fisica ou Química

Algumas pessoas não gostam nada de mudanças. Eu, se me fosse tão fácil transformar por dentro como é à minha volta, já teria certamente transmutado o meu mau feitio em doçuras de sorrisos constantes e pulmões cheios de capacidade de respirar fundo e fresco quando a temperatura emocional me aquece demais.
Adoro alterar cenários e trocar coisas de lugar, pintar, fazer bricolage, tornar bonito o que é aparentemente desprovido de graça, reciclar objectos antigos, dar vida e brilho ao que já estava triste e sem uso, encostado a um canto. É facil comparar este gosto por promover mudanças com a cozinha que faço todos os dias. Não há muita diferença em pegar nos alimentos e transformá-los em pratos que se tentam não repetir ao detalhe.
Há sempre qualquer coisa que se pode acrescentar ou tirar. Tudo o que fazemos pode sempre ser melhorado. Sei que há pessoas que não gostam nada disto. Precisam daquela necessidade de ter sempre tudo no mesmo sítio para sentirem segurança e se provam determinado prato e gostarem assim, vão querer repeti-lo exactamente com os sabores que os deliciaram inicialmente.
Não é que eu tenha dificuldade em criar raízes e em repetições. Há coisas que faço sempre da mesma maneira há anos e sou muito feliz assim. Há rotinas que me agradam em situações, pessoas e também em locais. Gosto de rituais. Mas nisto da cozinha e das mudanças em geral é a criatividade que traz um frenesim à flor da pele e aí não podem existir regras nem limitações.
A primeira vez que tentei fazer uma Batatinha à Alentejana que ficou a marinar de véspera em vinha d'alhos com os cubos de tofu, temperei com louro e tomilho fresco, deve ter sido para ir buscar a coragem de principiante. O tomilho é a erva da coragem e o louro é consagrado às vitórias, só podia correr bem! Mas hoje, depois de um fim de semana de obras e mudança de decor, feliz com o resultado mas de corpo cansado e denso da falta de praia, sem vaso de tomilho por perto, vou usar alecrim. Sei logo ao abrir o forno que esta mudança vai fazer com que estas batatinhas gulosas fiquem a ganhar.
Ora, esta alteração pode enervar quem já conhece este prato e adora tomilho, mas também já mudei em relação às reacções das pessoas, quando me sinto convicta do que faço. É o meu jeito. Todas as cores são bonitas e tudo tem direito ao seu momento de glória. Todos os sabores fazem falta. E no fim, são as experiências o que levamos connosco. Na barriga e no coração. 

quarta-feira, 22 de julho de 2020

A cor púrpura


"A água de nevão dá pão; a de trovão, em parte dá, em parte não."
Adoro a sabedoria popular! Ontem caiu tanta água de trovão que parecia que até o céu ia cair também.
Em miúda tinha pavor de tempestades e trovoadas, depois fui-me lembrando da minha verdadeira natureza, afinal nasci na pré revolução. O que não me agrada é a antecipação. A temperatura excessiva, a pele a colar e o ar denso e pesado.
Gosto-lhes do som, dos brilhos incandescentes no céu, do compasso de espera entre trovões, do cheiro que fica na terra e do silêncio aliviado que aparece no fim.
Sinto as trovoadas como a necessidade do caos para instaurar novamente a ordem. Já quando estou em tempestade interior, (quem nunca?) há duas bonanças que procuro. Praia e cozinha. A praia baixa-me o ritmo cardíaco. Olhar para a linha do horizonte no mar, lembra-me de ver as situações de outras perspectivas. A maresia entra-me na respiração profunda como um filtro e o banho na água salgada, quando aguento as temperaturas do oeste, renova-me o ânimo e enche-me de inspiração. Na praia, arrumo tudo no sítio certo, paro e respiro. Na cozinha, tal habitat natural, não há pausas, é um constante bailado criativo. Não importa se chove ou se faz sol, tudo é natural.
Sou eu, os alimentos, a música que toca, a luz que entra pela janela ao fim do dia, a minha hora favorita, o som dos pássaros lá fora. As tábuas de corte, as colheres de pau, o fogão e as facas. Em época de batata doce roxa, tudo isto é elevado ao seu expoente máximo. A maioria das pessoas olha para uma batata disforme, acastanhada, cheia de pó da terra e praticamente inodora e não vislumbra o potencial nutrivo nem a beleza escondida no seu interior. A batata doce é um milagre. A roxa é a mais bonita. Tem a polpa mais macia e a cor mais irresistível. Gosto de as assar com tempo que assim concentram mais os sabores do interior. Servem para quase tudo, sopas, purés coloridos, rolos de forno, chips ou tartes. Eu não resisto a tarte de batata doce de cor púrpura. Amasso a polpa com farinha de amêndoa e vagem de baunilha. Dou-lhe a textura cremosa que a vai segurar depois de fria com óleo de côco. Não precisa de açúcar nenhum. São tão doces como os momentos da vida quando aprendemos a apreciar tudo o que faz parte da natureza. Mesmo as tempestades.

segunda-feira, 20 de julho de 2020

Despertar

-Queridas pessoas que passam a vida a lamúriar e a queixar-se de tudo, plenas de resmunguice, experimentem passar um dia dentro de uma cozinha a fazer comida e jejum em simultâneo.
Estou a proibir-me de lamber dedos, depenicar as pontas das cenouras da sopa, fugir a sete pés da ideia de ir comendo os pêssegos enquanto os corto para a tarte. Não que precise provar, conheço os sabores de cor. Mas por norma, eu a preparar comida, tenho algumas semelhanças com um esquilo ou outro roedor qualquer que agarra, põe na boca, mastiga e armazena para depois. Isto sim, verdadeira ironia do destino!
Na última conversa astrológica que tive com o meu amigo João Paulo, que é brilhante nessa área, lembro-me de me ter dito que nos anos próximos iria sentir-me com a minha verdadeira idade.
Isto passou-se há uns três ou quatro anos e na altura fez-me uma confusão imensa. O que toda a vida senti e transmiti aos meus filhos, é que o corpo vai crescendo, as emoções vão-se adaptando aos caminhos e às histórias de que somos protagonistas, mas a criança interior está sempre lá, a lembrar-nos da nossa essência e do que - realmente - importa.
Hoje, com 46 primaveras e uns quatro anos depois da conversa com o João, começo finalmente a perceber o que ele me queria dizer. Acho até que começou a ficar mais claro há quase um ano. O relógio mudou ao aproximar-se dos 45. A criança está cá, graças ao grande Cosmos, mas começa a ter noção que há coisas que se estão a metamorfosear. É bom, na sabedoria que nos traz conforto ao que sabemos que somos e não abdicamos e, também flexibilidade para compreendermos que em determinadas situações conseguimos ser melhores, diferentes, com um poder de adaptação e agilidade de processamento, que sempre tivemos, mas que estamos agora a tomar cada vez mais consciência.
A parte mais difícil de assimilar, é que o nosso corpo sempre teve noção disto e agora mostra-nos que somos nós que estamos desfasados no ritmo. O espelho confirma. A balança susurra. Os botões dos vestidos saltam. Os ténis pedem caminhadas e os fatos de treino escondidos no fundo das gavetas teimam em voltar ao activo.
Os pulmões empurram com necessidade de respirar melhor e cérebro lembra que precisa de mais oxigenação para ontem! Não há como evitar. É preciso alterar hábitos e rotinas, dar carinho e cuidado, criar regras para tomarmos conta de nós como gostamos de tomar dos outros.
O cheiro da vagem de baunilha na Tarte de Pêssego começa a desviar-me o foco. Acordei às oito e em circunstâncias de go with the flow, já tinha comido umas belas torradas com a caneca de café cheio de espuma. A meio da manhã já marchavam dois pêssegos da caçarola que os cozeu para a tarte e, de certeza, uns punhados de nozes ou o que me passasse pela frente, entretanto. Mas isso era a outra eu, a de ontem.
Hoje é dia de voltar à sintonia com o corpo e com o resto. Os impulsos que esperem! Agora, vou almoçar um copo de seiva com sumo de limão e caiena e fingir que não estou a cheirar nada do que está à minha volta. 

Coração na lua

O dia amanhece nublado. Será só aqui ou também no resto do mundo? Aqui é um mundo. À parte do outro.  Já nem me lembro bem o ano exacto em q...