quarta-feira, 27 de maio de 2020

Dias doces

Água salgada - alma lavada. Diz a sabedoria popular. O mar e o sol são mesmo uma benção... Saio da praia sempre mais leve. Não de corpo, infelizmente. Bom jeito me dava deixar uns quilinhos na areia. Ainda estou a inspirar o cheiro de mar para levar um pouco comigo e reparo que já me alonguei no lazer matinal.
O povo também diz que em casa de ferreiro o espeto é de pau, mas não contempla as cozinheiras compulsivas, esta teoria. 
Por um lado, ainda bem, pois fico sempre com a sensação que me falta qualquer coisa quando fico muito tempo fora da cozinha, além disso, a comida vegetariana que se encontra fora, deixa um pouco a desejar. Combinámos um piquenique e vou preparar uns burguers de cenoura, noz e cogumelos e burritos de batata doce e feijão preto. De tão entusiasmada que estou até o pão de beterraba e os crepes quero fazer. Que saudades de estar com amigos e apanhar sol enquanto se petisca e se bebem limonadas geladas e afins!
Quando era miúda, os piqueniques eram comuns, no pinhal, com churrascos, camas de rede e mantas no chão, raquetes ou jogos de cartas à sombra fresquinha na beira do rio Lis. Tardes de memórias deliciosas que faziam render os dias bonitos que ainda chegavam para ir à praia depois da digestão, para terminar a preceito. O ar quente e o calor eram previsíveis, mesmo que ao cair do sol fosse aconselhável um casaquito leve para os mais friorentos, como eu. 
Agora já não há meia estação. É toda uma panóplia de peças de roupeiro desprovidas de época meteorológica. 
Os piqueniques trazem-nos aquela visão poética digna de quadro de Monet - chapéus na cabeça e vestidos de seda em campos de malmequeres e papoilas, mas, para mim que passo a vida a tropeçar e a estatelar-me no chão, que não consigo comer sem ficar cheia de migalhas e tenho uma dificuldade enorme em ficar quieta no mesmo sítio durante muito tempo, é de certeza preferível vestir uns jeans, uma t-shirt confortável e calçar uns ténis para ter a certeza que não falho a posição vertical. Nada garantido, ainda assim. O mais provável é que enquanto os adultos conversam e bebem vinhos rosés, eu pegue na limonada e me deite a rebolar com as crianças. Diz que brincar aumenta a imunidade.

quinta-feira, 21 de maio de 2020

Folclore

Papoila, malmequer, alecrim, videira e trigo, com um toque pessoal de lúcia-lima, para a boa disposição - Espiga apanhada logo que consegui, para não esquecer.
Esta necessidade de cumprir as tradições, impõe cá um rigor no psicológico, que no ano passado, que só me lembrei no dia a seguir, fiquei com a sensação que nada bateu certo depois. Já descansada e com a sensação de dever cumprido, começo a separar gemas de claras e o chocolate já derrete no banho Maria. De onde virá o nome do processo, a propósito?
Bolo de chocolate leva-me a um dos livros que mais gostei de ler até hoje.
Poucas companhias me dão tanto prazer como a de um bom livro, não querendo desvalorizar as pessoas da minha vida, claro. Nos livros, independentemente de quem os escreve ou da história em si, considero bom, se me flui facilmente logo desde o início. Gosto de leitura compulsiva, de palavras que controem histórias que despertam a curiosidade, que nos envolvem como claras batidas em gemas açucaradas, e alimentam a vontade de não largar o livro enquanto não se chega ao fim. Nunca, mesmo nunca, me atrevo a espreitar as últimas páginas antes de terminar. Detesto batotice! Inclusivamente, quando me aproximo dos últimos capítulos tento moderar o ritmo só para prolongar o gozo que sinto e manter a companhia durante mais tempo.
- "Como água para chocolate" da Laura Esquivel, foi-me sugerido por uma amiga, tinha eu vinte e poucos anos.
-É a tua cara- disse-me, a Patrícia.
Fala de amor, claro. Sou uma romântica incurável... Mas muito mais que romance, é a história de Tita, a personagem principal, e a emoção que passa para os pratos que cozinha, a entrega e paixão com que o faz e como o seu estado de espírito acaba por contagiar, literalmente, a sua comida e quem a prova.
Tita tornou-se parte de mim muito antes de eu perceber. Só descobri a minha paixão pela cozinha mais de uma década depois de a ler, e apesar de ter a certeza que dificilmente algum dia lhe chegarei aos calcanhares, fui contagiada por ela.
Isto dos contagios tem coisas boas, como no riso e nos bocejos, às vezes nas canções, nem sempre as que mais gostamos... Sabe-se lá porquê, passei a manhã inteira com o refrão da Nossa Senhora do Marco Paulo na cabeça - nem me lembro de a ter ouvido em algum lado - e em constante repeat, que de tão envolvida que estava, já nem sabia se havia de cantar, rezar ou tentar ouvir outra coisa à séria para mudar a frequência.
Há coisas que não têm explicação, pronto. Com as mãos da Senhora, de Tita ou as minhas, o bolo entra no forno e a espiga já está pendurada atrás da porta para que nada nos falte até à próxima quinta-feira de Ascensão. Nem chocolate, nem pão. 

sexta-feira, 15 de maio de 2020

Pedincelo

Aleluia! Está sol! Choveu sem parar três dias seguidos. Fiquei a pensar que durante uns tempos é melhor não dizer que a chuva faz falta. É preciso um pouco de sol, agora. Está tudo demasiado ensopado e frio. 
Espreito da janela da cozinha.
Apesar do desconsolo em nós, nota-se uma diferença incrível nas hortaliças!!
Tudo emproou e demarcou terreno. Os espinafres duplicaram o tamanho e os feijões que mal se viam, já trepam. Até as alfaces francesas que são mais sensíveis mostram o que valem.
A chuva faz falta à horta, pronto.
Limpo as migalhas das torradas da mesa de mármore para começar a arranjar os morangos. Ponho o avental e o lenço na cabeça que me faz me sentir que estou pronta, como se carregasse num botão de on. Falta música! As pequenas rotinas que dão conforto e a sensação que tudo está no sítio que é preciso.
Manias de cozinheiras compulsivas.
Os morangos cheiram tão bem! Nunca conheci ninguém que não gostasse deles. Já conheci quem não gosta de chocolate! E até de batatas fritas, que me parece quase impossível! Mas de morangos toda a gente gosta. Deram-nos uma carrada deles e é preciso arranjá-los, lavá-los bem e retirar-lhes os pedunculos.
Será o formato em coração ou o encarnado carnudo que os torna tão irresistíveis? 
Bem, são o fruto de Afrodite e também deve ser por isso que são usados na fase da conquista dos amores.
Com champanhe. A mim, conquistam, se o champanhe for à séria, com um bom equilibrio entre o doce e o seco que arrepia a boca com bolhinhas pétillantes. 
Isto parece petulante, bem sei, e até faz sentido aqui - um francesismo fundamental para transmitir a ideia com a palavra mais bonita e completa. E claro que tem que ser bebido numa flute!
Esta necessidade de dar às coisas a sua devida importância como se de uma demanda se tratasse, pode ser um traço de personalidade um bocado irritante, confesso, mas a idade traz-nos um género de estatuto que permite abrir mão de umas coisas, enquanto assumimos outras e as aceitamos e pronto. É uma mania, só gostar de champanhe em flutes e vinho em copos de pé alto. Mas atenção, não faço birra, facilmente bebo água e aí até pode ser directamente da nascente. E nos morangos também dispenso o açúcar e às vezes até a água para os lavar. É apanhar e meter na boca sem dó nem piedade.
Estes já estão lavados e partidos, vão encher uma tarteira e ainda hão-de chegar para uns frascos de compota.
Que sorte, merecer estas dádivas! E que sorte ter bocas para alimentar e conquistar. Sem champanhe, hoje não há champanhe para ninguém!

 

quarta-feira, 13 de maio de 2020

Brilho

Nunca fui noctívaga. Gosto de deitar cedo e de acordar antes do despertador numa de lhe mostrar que quem manda sou eu.
Sou do dia, da luz e da clareza, e na verdade também sinto que vou perdendo energia à medida que o sol se vai.
Às tantas, sou uma planta ou um painel fotovoltaico.
Também gosto deste dia, hoje. Treze sempre me deu sorte e o de Maio lembra a energia feminina sagrada e cuidadora. Acendo uma vela. É ritual.
A temparatura baixou. Ou são as nuvens rechonchudas que vão pairando e nos oferecem as quatro estações numa só hora. Muda tão rápido que nem há tempo para queixumes. Ai, o sentido de humor do universo em todas as suas formas de expressão!
Sem querer, ouço as notícias enquanto tomo o pequeno almoço. E até acordei cheia de fome.
De há uns anos para cá evito ver os telejornais e prefiro escolher onde vou buscar a informação. Limito-me às gordas, para estar minimamente em sintonia com o que se passa no mundo.
Nem sempre estou, ainda assim. E às vezes, ainda bem.
A idade impele-nos a dar primazia ao que nos faz bem e é por isso que ligo o spotify na lista "Oxitocyn" e começo a picar uma cebola roxa que vai despertar devagarinho no azeite com o aipo e o tomate que dão base ao meu ragout. A seguir junto as lentilhas. E quero homenageá-las, a propósito! Toda a gente faz um sorriso amarelo ao ouvir falar delas, coitadinhas...
Quero fazer um elogio às lentilhas!
E também às beterrabas, aipos rábano, couves pencas e de bruxelas, nabos e todas as coisas no mundo que são maravilhosas e altamente eficientes mas desprezadas pelo franzir de sobrolho da ignorância humana! Faça-se justiça!
Prometo elevar - todos os legumes e frutas feios, toscos, simples, puros e muito subestimados - à categoria de comer e chorar por mais!

terça-feira, 12 de maio de 2020

Sinfonia

É certo que há detalhes que são mais nossos que a impressão digital. Pormenores, nuances, peculiaridades que às vezes passam despercebidos a olho nú aos outros e até a nós (que nem percebemos a respiração, apesar de ser vital).
Alguns até podem enervar os mais sensíveis ou se calhar os que simplesmente vibram de uma forma diferente.
Factos:
-Sai um single de uma banda que gosto muito - é dado adquirido que é preciso ouvi-lo em repeat todo o santo dia!
-É época de cerejas ou de favas. 
Obviamente que não se come outra coisa. 
A estação passa a correr! Depois, pode-se avançar para os pêssegos e alperces, figos e até para os espinafres e nabiças que são verdes menos sazonais. 
E depois, repetir todo o processo.
Há obviamente uma intenção maior nisto, além de enfardar como se não houvesse amanhã ou exasperar os ouvidos e a paciência de quem rodeia. É preciso absorver. Consumir, num pacto de fusão até que a letra e a melodia toquem em nós sem precisar escutar a canção. 
Nas frutas ou legumes, claro que é para armazenar os sabores que nos vão preencher os espaços vazios quando acabarem as colheitas e permitir uma espera serena até o ano seguinte. 
O mesmo acontece com o pôr de sol diário - e ninguém me venha dizer que é sempre igual - ou com o cheiro das alfazemas e das rosas e o som do chilrear dos pássaros quando sabem que é primavera. 
Há que entranhar! Deixar que o que é bonito no mundo se torne parte de nós.

domingo, 10 de maio de 2020

My cherry amour

A primavera chega oficialmente quando chegam as cerejas. Ritual obrigatório - pedir um desejo na primeira trinca! Porquê pedir desejos à primeira cereja do ano? Não faço ideia. Já é um hábito de há tantos anos que nem sei como o ganhei... Todavia, as cerejas são mesmo especiais. Por alguma razão se colocam no topo dos bolos. A única coisa melhor que um bolo, é um bolo com uma cereja no topo. Não fui eu que inventei a expressão que até se usa fora de contextos alimentares.
Já no ano novo quando é para pedir desejos às passas, uma pessoa ou tem uma lista, ou como raio se há-de conseguir formular doze desejos em doze segundos? Sempre a pressão do tempo e das vontades!
Houve um ano que pedi apenas - discernimento - e em contra-senso enfiei-as todas na boca de uma vez.
Também peço desejos aos dentes-de-leão, às estrelas cadentes e às libélulas.
E às vezes, à vida. O que me move, é acima de tudo, o ritual, a sinergia que se cria ao selar um pacto com a natureza. Adoro rituais, apesar de saber que muito mais importante que os desejos é a capacidade de aceitação - isso sim - uma verdadeira benção conseguir atingir.
Há muitos anos atrás desejei ter uma menina. Queria muito uma parceira que herdasse os meus vestidos e habilidades culinárias e compreendesse os olhares cúmplices dos segredos femininos. 
Ao contrário das expectativas fui agraciada com dois meninos e isso ensinou-me que as cumplicidades ou segredos não têm género e que as heranças passam de forma natural e voluntariamente. Já os vestidos, nem por isso, mas que importa, a roupa?
Aprendi também que às vezes o que se recebe é melhor ainda que o que se desejou.
Não sei de quem terei herdado a paciência para descaroçar um quilo de cereja para fazer uma tarte, isto se sobrarem, porque a cada uma que meto na taça, são duas que meto na boca. Mas uma vez mais, é todo um processo necessário para obter o resultado pretendido e, ainda que esperar e tarefas minuciosas não sejam o meu forte em todos os outros enquadramentos da vida, na cozinha eu compreendo o tempo que é preciso, como se fossemos um só. 

quarta-feira, 6 de maio de 2020

Verdade e consequência


É do senso comum que quando nos sentimos felizes o tempo corre e quando nos falta alguma coisa, rasteja.
Isto para os humanos, claro. A espécie da eterna insatisfação. Aposto que tudo o que plantei na terra não precisa de horas ou minutos, só de criar raiz, alimento, sol e água. Que inveja das plantas, às vezes! Bem, também precisam de mimo, algumas. Nisto são como as pessoas. Umas crescem nas piores condições e privadas de tudo o que nos parece fundamental e ainda assim dão frutos doces só para mostrar o que valem. Outras precisam de mais substrato e que lhes afastem tudo o que é evasivo. Somos mesmo farinha do mesmo saco, deduzo eu, enquanto arranco ervas daninhas à volta dos coentros. Cresceram num instante e já consigo apanhar um molho valente para fazer uma sopa. Só comecei a gostar-lhes do sabor depois do Sebastião nascer. Curiosamente, ele nem os aprecia muito. Dado adquirido - parir transforma-nos não só o abdómen mas também o cérebro e o palato.
E passei por um momento que não tem mesmo nada a ver comigo por causa do raio dos coentros.
Há um filme giríssimo que se chama "A invenção da mentira". O argumento gira à volta de nenhum personagem ter filtros e todos dizem tudo o que pensam, mesmo tudo! Até que um dia no meio de uma enorme aflição alguém consegue finalmente não dizer a verdade. Só visto!
Sei que há pessoas que se identificam com o que eu escrevo, eu identifiquei-me com este argumento e percebi um bocadinho do que sofrem os que lidam comigo. Às vezes até consigo usar filtros coloridos para suavizar o impacto monocromático da franqueza extrema. Não sei se resultará, a técnica. Mas mentir, não sei! E o rapaz, há quase 30 anos atrás, devia ter pensado nisso quando me levou a jantar com os pais.
Pedi uma açorda, mas que não viesse com coentros, por favor! Hoje sei que quem não gosta de coentros não pede açorda e pronto! Não faz sentido. É o mesmo que cozinhar uma bolonhesa sem molho de tomate. O que é certo é que me fez sinal para fazer o esforço de comer a dita açorda que por engano saiu da cozinha mais verde que cor de pão, para os pais não ficarem mal impressionados.
O esforço saiu por onde entrou e não foi um espectáculo digno de se ver. No meio desta aflição lá confessei em desculpas que devia estar mal do estômago, porque também é do senso comum que para um coração apaixonado só uma verdade liberta.


terça-feira, 5 de maio de 2020

Raízes


Acordei cheia de inspiração e depois de um demorado pequeno almoço na varanda, sigo para as compras. Saio da praça e faço uma pausa a olhar para as filas de pessoas descontraídas com máscaras no rosto que transmitem uma ilusão de proteção.
Seria assim se fosse noutro tempo? Agora somos menos espertos ou sou eu que sofro a mais de nostalgia?
Assim, parece-me pior a almendra que o cianeto.
É fascinante a sabedoria popular que sinto como uma relíquia de herança genética.
Não são só as lendas, provérbios e lenga-lengas, carregados de conhecimento e experiências de vida ancestrais, são as mézinhas e todos os seus procedimentos e métodos, alguns aparentemente obsoletos mas que funcionam sempre quando acreditamos. Preces, novenas e ritos que passam de geração em geração como uma corrente de proteção familiar inquebrável e altamente eficiente!
De xaropes de cenoura para a tosse, a mentas frescas ou funcho para a digestão, a casca de laranja para as enxaquecas ou a oração ao anjo da guarda para uma noite descansada e o responso a Santo António para encontrar o que se perdeu. A não ser que se perca a cabeça, aí não há santo que nos valha. Sigo para casa que o tempo assim também não me vale e há bolos por fazer. Em breve é dia da Espiga e não me posso esquecer das tradições.
Ao fundo da rua há um parque e ouço baloiços. Gosto do som metálico da corrente que parece queixar-se do ritmo com que é embalada. É um som de memória. A nostalgia outra vez... Pelo caminho ainda roubo umas nêsperas que reinam na estação. Nêsperas, rosas e papoilas encarnadas por todo o lado. Sons e cheiros. Alguém precisa de mais?
Fui comprar beterrabas para o bolo de cacau. Já tenho os dedos todos roxos do sumo que lhes vai saindo ao descascar. É delicioso no meio do processo culinário ficar com mãos cheias de rastos de cores vivas que custam a sair com a água e quase parecem uma fusão.
Sinto-me parte mulher, parte beterraba ou framboesa, curcuma, batata doce roxa e afins. Um perfeito arco íris, hoje, em dia de sol e com cheiro a cacau. Já deixei uma nódoa rosada na toalha de linho bordada pela minha madrinha com tanta devoção... Será a devoção que nos falta? Não que me interesse por bordados, mas é um orgulho preservar com carinho o que alguém quis fazer só para nós. Guardei todas as toalhas, naperons e panos personalizados que me lembram dela e da esperança que tinha em que esse enxoval me tornasse numa dona de casa prendada. Devia escrever receitas para um dia deixar aos meus filhos. Para bordados não tenho jeito, prendada só na cozinha e os bolos de cacau não duram eternamente.

Coração na lua

O dia amanhece nublado. Será só aqui ou também no resto do mundo? Aqui é um mundo. À parte do outro.  Já nem me lembro bem o ano exacto em q...