terça-feira, 5 de maio de 2020

Raízes


Acordei cheia de inspiração e depois de um demorado pequeno almoço na varanda, sigo para as compras. Saio da praça e faço uma pausa a olhar para as filas de pessoas descontraídas com máscaras no rosto que transmitem uma ilusão de proteção.
Seria assim se fosse noutro tempo? Agora somos menos espertos ou sou eu que sofro a mais de nostalgia?
Assim, parece-me pior a almendra que o cianeto.
É fascinante a sabedoria popular que sinto como uma relíquia de herança genética.
Não são só as lendas, provérbios e lenga-lengas, carregados de conhecimento e experiências de vida ancestrais, são as mézinhas e todos os seus procedimentos e métodos, alguns aparentemente obsoletos mas que funcionam sempre quando acreditamos. Preces, novenas e ritos que passam de geração em geração como uma corrente de proteção familiar inquebrável e altamente eficiente!
De xaropes de cenoura para a tosse, a mentas frescas ou funcho para a digestão, a casca de laranja para as enxaquecas ou a oração ao anjo da guarda para uma noite descansada e o responso a Santo António para encontrar o que se perdeu. A não ser que se perca a cabeça, aí não há santo que nos valha. Sigo para casa que o tempo assim também não me vale e há bolos por fazer. Em breve é dia da Espiga e não me posso esquecer das tradições.
Ao fundo da rua há um parque e ouço baloiços. Gosto do som metálico da corrente que parece queixar-se do ritmo com que é embalada. É um som de memória. A nostalgia outra vez... Pelo caminho ainda roubo umas nêsperas que reinam na estação. Nêsperas, rosas e papoilas encarnadas por todo o lado. Sons e cheiros. Alguém precisa de mais?
Fui comprar beterrabas para o bolo de cacau. Já tenho os dedos todos roxos do sumo que lhes vai saindo ao descascar. É delicioso no meio do processo culinário ficar com mãos cheias de rastos de cores vivas que custam a sair com a água e quase parecem uma fusão.
Sinto-me parte mulher, parte beterraba ou framboesa, curcuma, batata doce roxa e afins. Um perfeito arco íris, hoje, em dia de sol e com cheiro a cacau. Já deixei uma nódoa rosada na toalha de linho bordada pela minha madrinha com tanta devoção... Será a devoção que nos falta? Não que me interesse por bordados, mas é um orgulho preservar com carinho o que alguém quis fazer só para nós. Guardei todas as toalhas, naperons e panos personalizados que me lembram dela e da esperança que tinha em que esse enxoval me tornasse numa dona de casa prendada. Devia escrever receitas para um dia deixar aos meus filhos. Para bordados não tenho jeito, prendada só na cozinha e os bolos de cacau não duram eternamente.

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