quinta-feira, 30 de abril de 2020

Cry baby

Nunca percebi porque é que quando somos crianças nos é legítima a curiosidade de saber como funciona o mundo e as pessoas - ah, é a idade dos porquês, mas depois, já crescidos soa a parvo perguntar sobre tudo. Como se alguém tivesse aprendido alguma coisa entretanto e nós ainda tivessemos 5 anos...Tive a sina de nascer com esta mente filosófica que às vezes parece uma maldição.
Não basta descascar cebolas! Se nos fazem chorar há-de ser por alguma razão! Lembro-me de ser miúda e estar sentada na mesa da cozinha a ajudar a minha mãe a preparar não sei o quê e ter sentido um verdadeiro momento de inspiração ao olhar para uma cebola. Aposto que isto soa a parvoíce e eu até ainda era uma garota, mas sei que olhava com olhos de ver. -"Olha, mãezinha, as cebolas são tão bonitas! E parece que a parte de fora maior vai abraçando as de dentro cada vez mais pequeninas"
Fiquei fascinada com as camadas e as simetrias enquanto a minha mãe deve ter pensado - "no meio de quatro, deve ser natural uma vir com um parafuso a menos." Acho que ainda hoje quando me vê a chorar ou a rir, porque às vezes tenho verdadeiros ataques de riso ou de choro que nem estranho e me sabem a purga emocional (que é verdadeiramente libertadora), ela ainda pensa e até diz em voz alta, às vezes -"Meu Deus, onde terei falhado?" O meu pai iria compreender. Também era todo emocional e resmungava quando não se sentia compreendido. Eu que sou a mais nova tive menos tempo dele...
Pronto, sou muito contemplativa mas isso ajuda-me a manter a capacidade de ver o melhor nas coisas e nas pessoas. E nós também somos camadas envolvidas numa pele fina, certo? Não libertamos ácido sulfénico quando nos partem ao meio, mas lá temos as nossas defesas. Ainda a semana passada dizia ao meu mais velho que a vida faz-nos crescer em corpo e os tropeços e frustrações nos tornam mais fechados e cautelosos, mas a criança está lá sempre na essência e que sentir assim é uma benção. Ele também olhou para mim com aquele ar -"Whatever"... que chegou de Londres há pouco e ainda vem cheio de tiques na linguagem. Onion bahji, my dear. Cebolinhas que nos vão fazer chorar por mais.

quarta-feira, 29 de abril de 2020

Teremos sempre Paris

Fiz uma jura. Prometi-me que hoje não vou refilar! As lamúrias vão-se entranhando sem querer e o meu cérebro às vezes soa-me a uma velha rezingona. Hoje hei-de conseguir desviar o foco para a beleza! Mandamento do dia - não refilarás!
Até começou bem. Ainda no quente aconchego dos lençóis e em jeito de câmara lenta percebo que está a chover. E isto podia ser logo o primeiro resmungo do dia, mas o som da chuva é capaz de ser o meu som favorito de todos, assim no sossego, quando o dia ainda deixa ouvir tudo do que importa. E hoje eu estou mesmo determinada! A chuva é uma benção e eu levo as juras muito a sério. E com esta determinação faço umas papas de aveia com banana. Tenho que dar tréguas à balança e parar com o café. Preciso mudar o meu ritmo para não empurrar o da vida que decidiu abrandar.
É incrível o quanto nos habituamos a funcionar com o raio da cafeína que em abstinência parece que passámos a noite toda em claro. Já estou a reclamar, pronto! Faço uma cevadinha a sorrir. O riso é indutor e assim volto ao foco, mesmo que não consiga parar de bocejar. Sorrir e bocejar ao mesmo tempo é verdadeiro desafio!
Sento-me a fazer a lista das compras para compor a despensa. Tenho de ir à Vila buscar cogumelos. Vou fazer um festim! Isto transporta-me a um dos episódios da minha vida, grávida do meu filho mais velho a assistir à estreia da Cidade dos Anjos em exibição no cinema em Vilamoura.
Há uma cena no filme em que a Meg Ryan, numa biblioteca lê um excerto de um livro de Hemingway que fala de comida. E eu bem digo que a vida nos vai dando montes de pistas, que no meu caso me iam passando ao lado. Reza assim - "Comi as ostras, que possuíam um forte sabor a água do mar e um leve travo metálico que o vinho branco e fresco ia neutralizando para lhes deixar somente o gosto próprio da sua massa suculenta, e, à medida que ia bebendo o líquido frio de cada concha e o fazia descer com o vinho fresco e bem apaladado, ia deixando de sentir a tal impressão de vazio."
Passou-me ao lado o autor durante a sessão de cinema.
Ponto 1- nunca comi uma ostra na vida.
Ponto 2- não sou fã de vinho branco.
Ponto 3- esta frase bateu-me de tal maneira que no final fui à bilheteira perguntar se sabiam o nome do livro citado no filme.
Ponto 4- Há pessoas incrivelmente boas no mundo e mesmo pacientes e prestáveis.
Estar muito grávida deve ter contribuído. É do senso comum que se têm desejos estranhos. Lá me deram o número de telefone para ligar que iam tomar atenção a esse detalhe na sessão seguinte.
"A moveable feast", traduzido para português "Paris é uma festa".
Como encontrei o livro depois de o procurar incansavelmente numa época em que não era tão simples quanto agora, fica para outra história. Agora vou cozinhar um banquete! 

terça-feira, 28 de abril de 2020

Fibra

Devia beber mais água. Manter o corpo hidratado faz-me sentir saudável. E comer maçãs e apanhar sol quando a chuva me deixa.
Só agora me dei conta que passo a vida a tocar na cara. É comichão nos olhos, no nariz e até nas maçãs do rosto que nem sabia que também se queixavam. Será só agora que sei que não devo?
Hoje sonhei que estávamos a viver um sonho. Um sonho no sonho. Se calhar estamos.
Acordei com a buzina da padeira. Eu e a aldeia inteira! Podem faltar abraços e passeios à beira mar mas não pode faltar a padeira nem o pão.
Estou dividida entre a frustração de não poder fazer nada do que me apetece e a preguiça de não me apetecer fazer nada do que devo. Tenho que fazer sopa! Mas gosto. Muito. O ritmo da sopa funciona como um mantra. Um mantra para uma preparação. É como uma poção mágica de um caldeirão digno de Merlin.
A sopa tem tudo e até as crianças adoram a minha. Que grande vaidade!
O segredo, podia usar o clichet - é o amor. O amor é o segredo para tudo. Na sopa também é o tempo. A cenoura precisa de vagar para amaciar a fibra e aveludar o puré. Cozer muito lentamente, como se nem existisse. Deixar-se ir como num desmaio que faz toda a diferença no resultado da textura. Que poesia, eu na cozinha a pelar raízes! As cenouras são raízes. Há que chamar as coisas pelos nomes. Depois é preciso a simetria, o equilíbrio do palato, com o nabo e a cebola. O resto que vem depois, tanto faz, só acrescenta. Entra tudo na panela sem água, com fio de azeite e magia acontece sem nenhum truque ou ilusão, em perfeita sincronia vegetal.
Estas rotinas dão cor ao dia e ao ânimo. O sol dignou-se a aparecer. Finalmente!
Faço uma pausa na cozinha. Já nem ligo a televisão. Junto os livros por ler, determinada a honrar-lhes o propósito.
-"Mindfulness para totós" - o primeiro da fila. Faço um chá com hortelã fresca.
Sento-me na cadeira lá fora, cheira a flores por todo o lado. As alfaces estão quase boas para colher e para a semana já consigo estrear os espinafres. A horta está linda, apesar dos brócolos terem mais lagartas que folhas. Cansei-me de as mandar embora. Fizemos um pacto. Lá as adoptei à força. Destinei-lhes um pé, os outros são nossos. Pareceu-me justo. Fiquei em paz e ainda nem abri o livro... 

domingo, 26 de abril de 2020

Tisana

Quando acabei o preparatório tive uma psicóloga de orientação vocacional que me fez uns testes para me ajudar a encontrar a rota seguinte. A professora Etelvina Cristóvão, uma querida, com quem ainda troquei algumas cartas depois, acreditava piamente que eu devia seguir a veia criativa, apesar dos resultados dos testes apontarem que tinha mais aptidões para matemática (todavia as notas tinham sido péssimas nesse ano) e raciocínio numérico e para línguas (se calhar já em alusão às de gato ou de veado). A criatividade era a terceira coluna mais alta do gráfico.
Não sei se posso ou devo responsabilizá-la, mas o que é certo é que foi ela que me meteu à frente os formulários de inscrição do Fit Moda, na Rua do Salitre, ainda por cima mesmo ali ao lado da Alexandre Herculano, onde trabalhava a minha irmã Ana.
A Ana é a menina do meio. Somos as três muito parecidas na estrutura, mas a do meio é a mais romântica. Acho que ainda hoje ela sonha que um dia virá um príncipe num cavalo branco que a levará para um dos castelos do país dos felizes para sempre. Um mulherão, ainda assim. Lutadora e com muito pêlo na venta. Condição genética, de certo. Cresci muito com ela. Apesar de termos muitos interesses comuns, é muito mais feminina e vaidosa que eu. A Nita cuida-se e enfeita-se de "tiaras e vestidos de princesa". Eu sempre senti que sou a princesa, o cavalo branco e o príncipe, e que já estou quase sempre num "país feliz". Quando saímos juntas para almoçar e pôr a conversa em dia, ela entra em todas as lojas trend de moda e decoração, tem um incrível sentido estético, a minha do meio, enquanto eu aguardo pacientemente numa Bertrand ou Fnac qualquer a descobrir o que há de novo em música e livros. Eu a ser pseudo intelectual e ela com a beleza e a estética que a alimenta. Um dia ofereceu-me um livro que disse que era muito bom, mas eu, leitora aficcionada e conhecedora, achei que era cor de rosa demais para mim e deixei-o a um canto para não ser bruta e lhe confessar que o meu elevado nível intelectual não se permitia a esse tipo de leitura. "Os Homens são de Marte e as mulheres são de Vénus."
E eu amo mitologia. Isso sim, leitura própria e evolucionista! Passo a dicotomia.
Guardei-o numa fila da estante junto aos livros que só enfeitam e que ficam no esquecimento. É curioso como a vida se encarrega sempre de nos fazer beber grandes chávenas de chá de humildade, o que é bom para a tosse, enquanto nos dá pistas do que importa e que estamos todos tão ligados uns aos outros, mesmo quando nem temos noção do quanto.
Há muitos anos atrás, depois do meu pai morrer passei por uma fase muito dolorosa e isso abalou bastante o meu relacionamento que aparentava mesmo estar a chegar ao fim. Já em aceitação e a pensar que era melhor começar a fazer triagens e a arrumar caixas com pertences, estou de volta dos livros, e do nada, há um que me cai mesmo em cima do dedo grande do pé e de certeza me fez gritar um palavrão enorme e feio do qual não me orgulho! Sentei-me no chão, ainda a praguejar e amaldicionar o ter nascido tão desastrada no meio de contorções e grunhidos, mas lá me decidi a abrir pela primeira vez o livro da Nita. Julgo que às vezes nem são tanto os conteúdos nem todos os detalhes de um cenário inteiro, mas sim a nossa rendição ao que somos e a necessidade urgente de sermos melhores. Li-o. Todo! Tomei notas mentais. E juro que aprendi coisas que nunca ninguém me tinha ensinado. Consciente, decidi testá-las. E por milagre, acaso ou destino, a relação durou mais dez anos. Passei a dar muito mais valor à mana do meio e estar muito mais atenta ao que me cai em cima dos dedos dos pés.

Colina

Hoje acordei com uma canção na cabeça que trouxe dos grupos de jovens, das catequeses ou se calhar do tempo dos escuteiros. Qualquer coisa assim : "Subiremos montanhas sagradas, colinas suadas do amor cristão. Lá no alto, Jesus nos acena, mostrando o caminho da salvação."
Essa fase de adolescência católica acrescentou um vasto reportório ao histórico das minhas bandas sonoras mentais. Não sei porquê esta foi uma das que me ficou. Lembro-me que numa das casas quando os miúdos eram pequenos, chegava a hora de dormir e subiamos as escadas a cantar, um em cada mão, às vezes um na mão e outro ao colo, e às vezes os dois ao colo, mas ainda com fôlego para imaginar montanhas sagradas que nos faziam suar enquanto caminhavamos para a salvação. Era ritual. Como se a canção lembrasse que no fim de um enorme esforço há um alivio, uma recompensa.
Se calhar essa playlist mental tocava na altura com a intenção de incutir os valores de fé, esperança e resiliência que eu queria passar às minhas crias.
Subir escadas até aí era ao som dos Led Zeppelin, que de certeza também cantaram alto e a bom som para eles que é preciso ensinar tudo o que importa.
Há anos para cá que quando subo escadas só me lembro é que devia fazer mais exercício e que fumar é mesmo parvo.
Não me lembro da salvação, nem das montanhas, nem de Jesus que mostra o caminho. Depois de tantos caminhos cheios de pedregulhos e matos por desbravar e outros cheios de desertos, com alguns oásis, é certo, mas com muitos cansaços e desitratações pelo meio, vamos sentindo que ou temos péssimo sentido de orientação ou Jesus se fartou e foi fazer outras coisas.
Neruda diz que é o amor que nos salva. Mia Couto diz que cozinhar é um acto de amor. E alguém muito sábio - Só a música nos pode salvar.
Esta sabedoria colectiva tem os ingredientes que preciso para me alimentar hoje. Amor. Cozinhar. Música.
Vou para a cozinha salvar o meu mundo.

sábado, 25 de abril de 2020

Svatantrya



O meu primeiro momento de liberdade do dia é ser a primeira a acordar. Respirar fundo. Ouço a casa em silêncio e escuto os sons lá fora. Faço torradas e uma caneca cheia de café quentinho. Agarro qualquer coisa para ler.
Segundo momento livre - Espreguiçar! Isto faz-me sorrir.
Sempre senti que tenho muita sorte. A minha mãe diz que feliz é quem feliz se julga. Esta teoria também deve funcionar com a sorte. E de certo que com a liberdade também. Nasci com a Revolução.
Ligo a música - Now we are free. Hans Zimmer.
A associação mental que me ocorre são pássaros. Asas. Voar. Liberdade é voar. Voamos quando nos sentimos felizes. Neste divagar já fatiei os pimentos e já estou a picar cebolas. Se não me tivessem feito chorar ainda andava por ai a bater asas. Uma sorte não me cortar!
Volto à terra do sempre com as pontas dos dedos amarelas da curcuma fresca.
-Caril! O cheiro e o sabor intenso das especiarias fazem-me sentir viva. Nem sinto qualquer afinidade à India. Não é de todo aquele país que está na minha rota de destinos imperdíveis, mas toda a sua gastronomia é inexplicável regresso a casa. Naan, chamuças, pakoras...que festim!
Liberdade é dançar! E dançam, as cebolas, os pimentos, a curcuma, o alho e os coentros. Já cheira. Tive tanta pressa de crescer para ser livre. Liberdade também é responsabilidade. Vou mexendo a panela.
Gosto do ritual. O que hoje damos como certo, foi ontem determinação e coragem.
Tiro a casca da manga que me derrete de macia, nas mãos. O meu pai ensinou-me a escolher as mangas. É preciso perceber a consistência certa, o cheiro, a cor. As avermelhadas são as melhores.
Devia ter cravos no jardim. Junto o leite de côco e envolvo. Os legumes e as memórias. Ontem voltei a tentar pintar as pereiras. Podia ser outra árvore qualquer mas as pereiras são mesmo bonitas e agora estão cheias de flores brancas. São as que me fazem sentido. Se calhar não nasci para pintar, mas hei-de tentar até a imagem que guardo passar pelas tintas. Baixo o lume. O fogo brando faz o resto. Vou plantar cravos. Fazer uma celebração. A liberdade é um estado da mente.
Caril sabe a revolução.



segunda-feira, 20 de abril de 2020

Caramelo salgado

Abril, águas mil. Lembro-me ao chegar das entregas do dia, toda ensopada e a sonhar com lareira a crepitar. A minha tia Evangelina é que era barra em provérbios e ditos populares.
-Chuva e sol, as bruxas estão a fazer pão mole.
Vou acendendo a lareira, não é pão que me apetece fazer. Preciso de uma coisa doce, mas estas coxas de quarentena agradeciam alguma contenção. Há um mês e tal inscrevi-me na contemporânea. Quem canta seus males espanta, mas eu afasto os meus a dançar. Já cheira a azinho a arder no ar. Tem que se aquecer a alma e o corpo. Que se lixem as coxas, tenho montes de laranjas, umas madalenas nunca fizeram mal a ninguém. Logo volto à dança contemporânea...Hum, também posso fazer um molho de caramelo. Um nougat com Nozes de macadamia! A culpa é do dia! Todos os dias são bênçãos, mas há uns que temos de lhes espremer bem a polpa até que saia algum sumo. Não há condições. Aqui até nos deixam o pão quentinho à porta. São tudo desculpas para ficar em casa a engordar para alguma coisa que ainda não sabemos o quê. Mas de barrigas felizes, é certo!
-Maiores olhos que barriga! Lá faço as madalenas e já estou a mexer o caramelo que impregna o ar. Devia encontrar a outra nuvem, aquela que faz dispensar açúcares, onde encontramos o centro. Queimar um incenso, fazer uma meditação, ver se me sai algo que inspire. Isto de inspirar pessoas é uma responsabilidade que pesa mais que a balança. - Há mais marés que marinheiros!
Vou esmagando as macadamias, dividida entre o coração e a razão. Deixo para amanhã o que devia fazer hoje. Hoje, vou fazer como a chuva e cair. No sofá, com madalenas e nougat!

sábado, 18 de abril de 2020

Prelúdio

Há muitos, muitos anos tive um namorado que adorava a minha voz e passava a vida a dizer - Devias fazer rádio.
Eu não vivo sem música. E todas as boas histórias tem um som. Sempre. Há sempre música ou comida no ar!
A vida tem que ter banda sonora mesmo que às vezes seja só dentro da minha cabeça.
Sou a mais nova de quatro e tenho uma memória eficiente, ou tinha, e um conhecimento musical herdado acima da média, que devo ao meu irmão Paulo.
Enfim, parece que reunia as condições necessárias para ter o meu próprio programa de rádio e o dever de partilhar com o mundo do outro lado da antena, a minha voz e o meu bom gosto e conhecimento musical, segundo o rapaz. O amor é cego. Já sabemos. Posto isto, e já completamente convencida, tenho um dos meus impulsos num dia em que vou a passar na avenida de Ceuta (onde era a sede da TSF e da Rádio Energia que já se tinha transformado em FM Radical) e decido estacionar em frente ao edifício e subir ao segundo andar onde peço para falar com o locutor de serviço. Eu tinha uns 21 anos, está bem? É a ternura dos quarenta e a loucura dos vinte.
Subo! O ambiente era informal e, ou movido pela curiosidade ou pelo espanto, o Simões lá me ouviu entre canções da playlist, a confessar entusiasmada e divertidíssima que tinha um namorado que dizia que eu devia fazer rádio e por isso ali estava. Achou-me graça, talvez pela coragem inconsciente, acima de tudo. Convidou-me para participar num programa de domingo com o Jorge Gabriel. E foi daqui, do Ferro Velho e da festa na discoteca mais in dos anos noventa que vim a conhecer o pai dos meus filhos. Ligado à restauração e a cozinhar como um Chef em casa - o melhor que já conheci até hoje - foi-me despertando a vontade de um projecto comum no ramo. E eu apesar de morar sozinha e fazer sempre a minha própria comida estava longe de sentir que tinha nascido para isso. Mas agradou-me a idéia. Porque não? Se calhar, há uma altura para as coisas se revelarem em nós, como aqueles virus - ou serão bactérias? - que temos sempre mas que só se manifestam em determinadas condições. Adiante! O projecto acabou por surgir e a minha função era um género de relações publicas, anfitriã, gestora, patroa. Talvez de tudo isto, tivesse algum jeito para relações públicas quando não estava em fase pré-menstrual ou a lua em cheia. Ou seja, às vezes não tenho jeito nem para as relações nem para publico, pronto.
Quis o destino ou o acaso que nesse projecto trabalhasse para nós uma pasteleira, excelente, por sinal, mas com a qual eu raramente estava de acordo. Vinha de um formato de pastelaria industrial, cake design e essas coisas muito perfeitinhas que não se enquadram nada na minha mente rustica.
As sobremesas têm que despertar as nossas memórias- é isso que a comida deve fazer. A comida e a música, claro. Era a tarte de maçã da minha sogra, o bolo de bolacha da minha tia Melita, o pão de Ló da minha avó Maria do Rosário, o doce de ovos com amêndoas torradas que o meu pai fazia e que dá origem à base das minhas Pérolas. Memórias!
Todos os dias a pasteleira fazia de uma maneira e eu dizia que preferia de outra, por exemplo- uma tarte de maçã na minha cabeça não pode ter um aspecto sofisticado. As maçãs são densas e as reinetas nem devem muito à elegância, são grosseironas, do campo! A tarte tem de ser coerente, brilhar pelos sabores e pelas viagens a que nos transporta até ao tempo em que não se pincelavam os bolos com glaces vendidas em pacotes.
Enfim, a miúda bem se esforçava e quanto mais bonitos e arranjadinhos eram os acabamentos mais eu reclamava. Houve um dia que se fartou e teve a lucidez de me enfrentar e mudar a minha vida… - “Se a Angela nunca está satisfeita com o que faço e até sabe o que quer, porque não faz você?”
E foi assim, com um “acorda e faz tu” que comecei de volta dos fornos e das batedeiras, com aquela sorte de principiante de quem não faz a menor ideia do que está a fazer, mas a não querer dar parte fraca e sempre com muita audácia, como em quase tudo na minha vida.
E curiosamente sem estar muito preocupada com as regras e com aquele rigor que é do senso comum que tem a pastelaria, lá fui arriscando; e melhor que tudo, as pessoas iam gostando mesmo do que eu fazia. Fui abandonando as relações publicas e aprofundando cada vez mais a relação com o açúcar e os ovos, o chocolate derretido e as combinações espontâneas e improváveis.



sexta-feira, 17 de abril de 2020

Sinais

Hoje fui ao correio enviar cartas. Estou com a sensibilidade à flor da pele. De onde virá esta expressão, a propósito? Mas pronto, sinto saudade e apetece-me enviar carinho a quem gosto de todas as formas possíveis. Fiquei à porta, só entra uma pessoa de cada vez. O correio segue, mas demora a chegar. Faz-se o que se pode. Enquanto espero distraio-me com os titulos dos livros no balcão. Os olhos fixam uma capa azul celeste - "Sinais, o universo fala consigo. Saiba como compreender."
Começo a viajar. Eu acredito em sinais, o que conta é o que acreditamos, mesmo que sejam anjos, fadas ou no pai natal. Se acreditamos, existe para nós e dá-nos sentido e isso basta. Chega a minha vez. Sigo o impulso, estou a transbordar de impulsos contidos e enquanto entrego as cartas, agarro o livro. Na contra capa leio um comentário de um autor que me é muito familiar e que me iniciou nestas coisas de acreditar no invisível - isto só pode ser um sinal!
Paguei o livro e os selos e segui para o carro com a sensação de quem encontrou um mapa de tesouro. Sento-me e faço o que é habito quando tenho um livro novo, abro aleatoriamente e vejo o que me diz. Isto normalmente determina se a leitura será pausada ou compulsiva. Outro sinal...
Provavelmente a quem não liga a acontecimentos que não são validados cientificamente tudo isto não passará de pura fantasia ou alucinação. Mas basicamente o que me importa é o que resulta comigo e eu sou feliz com as linhas que me cosem. Há catorze anos, logo depois da chegada da primavera, o meu pai foi para o outro plano. Naturalmente e sem nada que nos preparasse antecipadamente, foi de uma tristeza incomensurável para todos. E a mim dá-me sempre uma enorme aflição não conseguir aliviar o sofrimento dos que amo. À boa maneira de quem tenta sempre procurar a ordem no meio do caos, imprimi para a minha mãe e para os meus irmãos um texto que saquei da net que se chama - A morte nada é. Atribuido a Henry Scott-Holland e a mais uma carrada de autores. Irrelevante, aqui. O conteúdo era o que me interessava. Colei uma foto do meu pai a sorrir e tive esperança que de alguma forma conseguiria aliviar as tristezas. Hoje, passados todos esses anos, esse texto está na página aleatória que acabo de abrir.

quinta-feira, 16 de abril de 2020

Posalosa

É curioso, ao longo da nossa vida termos detalhes que nos acompanham como sombras, ou luzes - depende da perspectiva - mas ao mesmo tempo irmos sofrendo metamorfoses noutros aspectos. Será aleatório o que muda e o que mantemos? Seremos como árvores com um tronco inteiro, que libertam folhas que já não servem para dar lugar a outras? Afinal, florescemos e deixamos frutos das nossas experiências por ai...Por falar em frutos, hoje estou de volta da horta. Chove aquela chuva miudinha que não acrescenta nem alivia, só para mostrar que cai porque pode. Planto acelgas que nos mercados bio das cidades são vendidas a peso de ouro. Aqui nascem à beira da estrada. De certeza que não escolhem onde criam raizes e não têm crises existenciais nem diálogos internos filosóficos. Faz um mês e tal deste ritmo e eu sinto-me mais ou menos como em miúda quando as férias grandes pareciam durar mais que o resto do ano e chegava ao fim de Agosto cheia de vontade de voltar à escola e à rotina.
Nem parece meu, é verdade.
Se calhar, isso mudou. Por outro lado, fiquei mais corajosa. Era uma grande medricas em miúda, vicissitudes de ser a mais nova de quatro, cheia de mimos por todos os lados.
A minha professora de estilismo passava a vida a deixar notas nos meus croquis - Solte-se! Arriscar mais!! E aqui já era bem mais crescida. Será a coragem que dá criatividade ou a criatividade que traz coragem? Tenho a certeza que estão ligadas, mas é só uma das minhas teorias Angelicas de um manual de vida que só a mim é útil. Acho que comprovo diariamente essa teoria no departamento em que me é tão fácil improvisar que já o faço de olhos fechados. Cozinha! Deu-me para acelgas recheadas com arroz de feijão. Inspiração da horta e da cabeça fria da chuva. As coisas boas é que dão sentido ao dia. 

terça-feira, 14 de abril de 2020

A árvore

E se a vida for só isto?
Este é o pensamento que me atormenta nos últimos dias.
E se não passa mesmo de um castigo divino para começarmos a dar valor ao que importa? Eu achava que já dava...
O que é certo é que as prioridades estão a mudar. A todos os níveis.
Antes de pensar no que vou fazer para o almoço, tenho que me lembrar que preciso não me esquecer de sobreviver.
Sento-me lá fora numa pausa a ouvir o silêncio e a reparar na enorme sorte que tenho tido. Todos os dias respiro fundo e tento perceber se o ar me contínua a fluir leve ou se começa a pesar. Estou bem. Mais um dia. Volto a respirar fundo e vou para a cozinha tratar da massa folhada para rechear com mascarpone e framboesas. O transe culinário, ajuda-me a desviar o assunto. Olho no reflexo da janela e descubro entretanto que as minhas sobrancelhas no formato original põem as da Frida Khalo a um canto. Há tantos anos que são contornadas, que já nem sei (e ainda bem) como são na génese. Contornadas, mas não por mim, que percebo a falta de jeito que tenho para as tarefas de cuidados femininos.
Tenho de corrigir isso!
O pensamento foge-me outra vez.
Não são só os miúdos que estão a ter aulas em casa. Nós parece que também. Estamos ou não a aprender a viver diferente, a cortar hábitos e padrões?
Se isto não é uma escola não sei o que será. Custa-me mesmo é cortar nos abraços e nos beijos. Será que também vamos aprender novas formas de manifestar o afecto sem o toque? Preferia cortar nos hidratos de carbono.
Sorte a dos bichos que não sofrem com estas regras e se rebolam sem preocupações.
Já cheira a massa folhada que alourou entretanto. Começou a trovejar. Ouço o carteiro. Recebi um postal! Confesso que sinto este regresso às tradições bonitas como uma benção. É bom ter o essencial. O essencial é muito menos do que julgamos. E é bom ler em papel e não receber só contas e promoções do supermercado.
Um postal manuscrito é uma impressão digital que nos entra pela caixa do correio. Sente-se a presença de quem escreve, além da voz, em cada palavra. Um abraço de papel de um ramo da mesma árvore.

domingo, 12 de abril de 2020

Passagem

De todos os lugares por onde já passei, há uns que por razões muito especiais me estão no coração.
Colares tem muitas dessas razões. Tantas! Conheci muitas pessoas que me ficaram e passei por experiências inesquecíveis com luzes douradas de fim de dia e cheiro a Pérolas, lendas, amores perfeitos e jasmins.
Do lado de lá do coreto, ganhei uma amiga. Devia ter uns setenta anos, a minha Casimira. Entrava, tomávamos um café as duas. Cheio, o dela. Quase como a vida que já tinha vivido. Às vezes comia uma fatia dos meus bolos. Com mil cuidados e medo da glicemia.
Rija, com tanta fibra como doçura.
No meio de conversas e desabafos, cresceu-nos um carinho enorme e um dia, nos meus anos, perto do ultimo Natal que passou neste plano, ofereceu-me uma orquídea.
Tenho a certeza que por ser a flor mais especial para ela e bonita e delicada e se calhar é essa a razão de eu nunca lhes ter achado grande graça, às orquídeas.
Nunca fui fã de aspectos tão frágeis que parece que se partem quando tocamos ou subimos o tom na voz.
Eu tenho uma voz grave, dificuldade em sussurros e preciso de abraços apertados sem me preocupar com o ar dos pulmões. Como sou desastrada por natureza, não queria mais preocupações...
Guardei-a porque foi ela que me deu.
De vez em quando lá a olhava pelo canto do olho, afinal é bonita e eu gosto de coisas bonitas, mas prefiro as resistentes, as que aguentam tudo e não as florzinhas.
Deve ter passado o inverno e se calhar meia primavera quando me lembro de a ter olhado outra vez. Com duas folhas verdes enormes, eu com algum sentimento de culpa e ela já sem flor, ainda menos interessante, assim despida.
Nem sei se a terei regado alguma vez nos meses que se passaram. Lembrei-me da Casimira, do carinho, dos abraços, dos nossos cafés e das conversas e deitei-lhe umas gotas de água antes de voltar a esquecer-me dela na janela da casa de banho de cima. Talvez passado um ano, floriu outra vez, já eu nem me lembrava que existia. Olhava para mim com ar doce, florido e elegante, cheia de humildade e cor, a dizer-me que a resistência às vezes é de uma subtileza enorme e que as fragilidades não são eternas nem aparentes e também que há momentos para tudo na vida. Esta orquídea foi uma Páscoa fora de época.
A minha Estrela de Natal também não quer saber das regras do calendário nem do senso humano e em pleno Abril, brota folhas vermelhas.
A pêra rocha que também já floresce aqui por todo o lado e cumpre a primavera, soube eu há pouco que teve origem na Várzea. Em Colares. Isto reforça-me ainda mais a teoria do quanto está tudo ligado na minha vida.

sexta-feira, 10 de abril de 2020

A eito

De vez em quando, no meio de uma qualquer tarefa mundana, dou por mim a ouvir vozes. Calma. São vozes apenas na minha cabeça mas não passam de ecos ou de memórias não selectivas que pulsam esporadicamente das profundezas do meu inconsciente. Isto promete...
Não, não comi os cogumelos errados, nem estou a sofrer de quarentenacinações!
Eu já explico!
Mas fiquei a pensar que é curioso crescermos, evoluirmos (alguns de nós, pelo menos...) num percurso tão único, pessoal e intransmissível e mesmo assim, chegarmos aos quarentas e poucos e ainda ouvirmos esses ecos que soam a tempos pré históricos, em toda uma retrospectiva e completamente do nada.
Ou se calhar, do tudo. Mais ou menos assim:
Estou eu a tentar organizar um pequeno viveiro de aromáticas muito artesanal em aproveitamento de umas caixas de ovos e tenho sementes de Manjericão, Hortelã, Coentros e Tomilho.
Como sou uma megalómana visionária, penso logo em enormes molhos de cheiros para me perfumarem os pratos, começo a sentir-lhes os aromas e aposto que até pensei numa receita em que as pudesse usar às quatro ao mesmo tempo, de tão entusiasmada que estava.
Como as embalagens trazem dezenas de sementes, preparei muitaaas caixas de ovos.
Como não há bela sem senão, grandes resultados requerem grandes trabalhos e o trabalho não me assusta nada, já a rotina, mata-me de tédio.
Ou seja, antes de começar a abandalhar, fui com uma pinça quase semente a semente e com mil cuidados enquanto imaginava rituais de fertilidade e prosperidade e a desejar longa vida a cada uma delas, e depois houve uma altura, talvez umas cinquenta pequenas sementinhas depois, que o tédio me invadiu e decidi abdicar da minuciosidade e do detalhe e sou capaz de as ter atirado um bocadinho a monte e indiscriminadamente enquanto me convencia - pronto, seja o que Deus quiser, o que tiver de ser, será! 
Eu até acredito no destino...
Deve ter sido mais ou menos por esta altura que começaram as vozes na minha cabeça. E até podia ser a minha consciência, mas a expressão e o tom eram de certeza do meu pai.
- "A eito, Angelita. A eito! "

Alma Mater

Passei a infância e parte da adolescência a querer ser adulta e independente. Mal sabia eu... Como cientista, educadora de infância ou escritora, as minhas pequenas aspirações da altura, não consegui. Aliás, saiu-me tudo ao lado, se calhar porque não me conseguia decidir. Tive fases de querer ser tanta coisa, alguma haveria de dar-me a independência dos crescidos, mas afinal para que raio teria eu nascido?
Quando fui mãe, no entanto, tive assim uma espécie de epifania e achei que - Agora sim, é isto que vem dar sentido à minha vida.
Os meus filhos são de longe o "meu" bem mais precioso, mas só algum tempo depois me apercebi que aquela sensação de - Nasci para ser mãe! - me orientava no sentido das características dessa ingrata "profissão" e não obrigatoriamente para parir 12 crias e cumprir os sonhos que a minha mãe não cumpriu.
De onde vem esta necessidade de alimentar o mundo se não dessa veia de matriarca que tenho? 
Eu nem como os meus bolos... 
Ou o impulso incontrolável de chamar à atenção das pessoas em todo o lado, quando sinto que não são correctas, como se as quisesse pôr de castigo (e às vezes, é mesmo um castigo ouvir-me a refilar...). 
A atracção por quem sinto que sofre que assim posso reparar e cuidar. E até esta mania de nunca desistir de ninguém mesmo que não me tratem como acho que mereço. A terrível convicção que sei tudo e que dou óptimos exemplos de moral e bons costumes.
- Eu penso que sou mãe de toda a gente !!!
Mas atenção! Este "monstro" não se criou sozinho...de alguma forma os "meus filhos" espalhados pelo meu pequeno mundo, alimentaram esta "profissão" que desempenho. Ou tento.
É ligar para pedir conselhos, é como faço aquela tarte, é que chá devo fazer para a dor de barriga, ou tiras-me uma carta no Tarôt para saber o que fazer?
Ligam-me quando precisam de alguma coisa, de resto acham sempre que resisto a tudo e nunca preciso de nada! Bate ou não bate certo na minha teoria?
Nem sei o que começou primeiro, será que nasci mãe galinha?
Por falar em ovos! Está quase na hora de almoço.
Não se pode deixar as 'crias' com fome. Queria eu ser adulta e independente para isto...



quarta-feira, 8 de abril de 2020

Tibungo

Quando eu era pequenita caí dentro de um alguidar onde a minha mãe tinha roupas a corar ao sol, em lixívia. Procedimentos comuns dessa geração, que também tinha tanques nos quintais para esfregar e lavar camisolas de lã ou outras peças que não fossem à máquina. Quando havia máquina. Agora acho que já ninguém o faz. Lavar roupas no tanque ou deixá-las a corar, em lixívia. O pronto-a-vestir lowcost tornou essas tarefas desnecessárias e pelo menos assim, há menos crianças em perigo. E também acho que já nem há tanques.
Enfim, parece que me debrucei, fascinada pelo brilho do reflexo do sol e caí de cabeça. Devia ter 1ou 2 anos.
Devia também ter aprendido logo ai que nem tudo que reluz é ouro, mas julgo que foram precisos mais uns longos "mergulhos desinfetantes" ao longo da vida e ainda assim continua a ser relativamente fácil eu voltar a acreditar.
Não em ouro, mas na luz que sinto vir das pessoas, mesmo as que às vezes têm sombras maiores que elas.
Pronto, mas nunca parti nada. Talvez umas fracturas pelo coração, mas partir, nunca, nada. Uns pratos e uns copos, vá... Mas sem querer!!
Quem sabe se a lucidez que me vêem por vezes não virá daí, da lixívia? Deixou-me claramente a cabeça mais fria!
Ainda hoje não lhe suporto o cheiro. E cheira a lixívia por todo o lado, agora. E a álcool. E a rostos cobertos que só mostram olhos. Quem vê olhos até vê o mais importante, mas vê-se medo, saudade e tristeza. Eu tento sorrir. Tento transmitir pelo olhar que é preciso ter esperança e paciência e acreditar na luz. Deve ser porque é uma forma de também eu me lembrar. Mas não sei se acrescentará alguma coisa, o meu olhar sorriso...
Cheguei da praça, fui buscar ovos de galinhas que sei que são felizes. A Madalena deu-me limões e mais vale fazer uma Tarte para levantar os ânimos. Esta tarte levou-me meses a afinar proporções e ingredientes, mas quanto mais a faço mais me parece que fica melhor ainda. Há colheradas que nos despertam todos os sentidos. A minha Tarte de Limão e merengue é assim. Como um pedaço de ouro que reluz!

terça-feira, 7 de abril de 2020

Mapas

Não sei se com os outros também é comum, mas tenho um género de tique quando me sinto muito insegura e me falha a sabedoria interior ou a convicção que é testar os sinais do destino em busca da resposta que não me sai em espontâneo.
E esse é todo um diálogo que se passa dentro da minha cabeça, mais ou menos assim - se amanhã chover é sinal que em vez de Salada de Quinoa devo fazer Caril de Legumes. Mas também uso esta técnica nada provada cientificamente em situações mais delicadas, como por exemplo, todos diziam que não era boa aposta um vegetariano no Bombarral e a minha decisão de avançar foi em função de receber um desses sinais que pode parecer tão pouco consistente que prefiro guardar só para mim.
Mas adiante, que há coisas em mim que são demasiado previsíveis, como nunca fazer uma sopa sem nabo. E isso até é do senso comum. O nabo é o mediador entre os legumes, na sopa. Não é superstição. Ou sempre que passamos numa quinta aqui perto que tem um enorme terreno onde pastam ovelhas e um cavalo branco, tenho de parar para lhe fazer uma festa. Ao cavalo. Manias. Chamo-lhe Rocinante, por parvoíce, talvez por ser zona de moinhos, mas cada vez que olho para ele acho que tem ar de Pégaso. Eu pelo menos sinto que levanto voo sempre que lhe faço festas ou dou maçãs do lado de cá da vedação e com mil cuidados para ele não se magoar no arame farpado em cima.
Quem já tocou num cavalo deve perceber o que sinto. O bafo de calor que lhe sai pelas enormes narinas e os segundos que dura na palma da minha mão é uma sensação indescritível!
Mas isto era suposto ser sobre coisas previsiveis e imprevisíveis. Numa outra crónica qualquer falava do quanto sinto numa ligação quase definida, quase, porque há coisas que me transcendem completamente, como é óbvio, mas olho para as situações mais marcantes que vivi e percebo a razão maior de terem acontecido. Quase todas! As desilusões que tive, as bênçãos que me cairam do céu, as portas que fechei e outras que abri, ao olhar para trás fazem-me sentido. Aquele catering que me tirou o sono durante uma semana e exasperou todos à minha volta enquanto transbordava brutidade e rosnava 'deixem-me no meu canto' - é aquela coisa da dor, ou do medo, que devem vir do mesmo sítio, preciso de me resolver antes de voltar aos outros, requer algum espaço/tempo, isto...- serviu para conhecer uma amiga que sei que ficará para a vida. E comigo, para a vida vale mesmo cada letra em fiel determinação.
Talvez daqui a uns meses, com muita esperança minha, se possa olhar para trás também nesta situação e compreender a razão maior do que foi e do que ficou.

Ponto de Pérola.

Há pessoas que quando sofrem escrevem. Outras pintam ou fazem música. Há gente que consegue transformar a dor que sente em arte e eu admiro mesmo muito essas pessoas. Eu se sofro não quero comunicar nem transmitir a minha dor de uma forma bonita. Quero guardá-la só para mim e só a solto quando a resolvo e deixo ir. Se a manifesto sem querer, posso garantir que dificilmente haverá beleza nesse gesto. Tenho péssimo feitio e a sofrer fico bruta. Curiosamente em situações mesmo, mesmo graves, de Carmo e Trindade a cair ao mesmo tempo, nunca me sai o lado lunar e consigo até ter uma atitude lúcida, proactiva e altruísta. Mas isso é outra história que só interessa ao meu ego e não acrescenta nada aqui. Aqui é do sofrimento e da reacção. E da brutalidade ou da poesia.
Se faço comida enquanto sofro, nesse momento, esqueço o sofrimento.
Uma coisa é a dor outra é a comida. Por exemplo...
Neste tempo de recolhimento forçado podia levantar-me e ir para a cozinha de pijama e ramelas, com meias de lã e cabelos desgrenhados. Não consigo! Tenho de estar lavada e vestida, penteada e perfumada e até o que calço importa. Tem de ser confortável, mas não pode ser pantufa ou chinelo. Para fazer comida, não!
Se calhar é a relação entre: corpo-gravidade-convicção. De meias ou pantufas não me sinto preparada para nada a não ser para me deitar no sofá a ver Netflix. E descalça que dá para tudo, agora não dá. Não queremos cá constipações ou gripes...
A antecâmara da cozinha faz toda a diferença no grau de entrega e por conseguinte no resultado. A atitude e o estado de espírito ao começar são por assim dizer, a mise en place etérea da coisa. Como num açúcar que se vai fundindo na água até chegar ao ponto certo.

segunda-feira, 6 de abril de 2020

Chronus

Choviam cântaros hoje, quando saí para entregas. A ironia ou sorte é que me apetecia mesmo ficar em casa. Agora ainda chove e bem!
Do forno sai um vapor quente a Mirtilo e Laranja dos muffins que se preparam para servir de lanche. O perfume inunda a cozinha e dança pelo ar. Os pássaros no quintal não se cansam da cantoria e presenteiam-nos com verdadeiras serenatas mesmo à chuva. A chuva ensopa-nos a nostalgia e a saudade. Parece que o tempo a mais fica pegajoso na pele, como se até não fosse uma coisa boa. As revoluções devem mudar os paradigmas e o maior deles aqui é que - nunca se tinha tempo para nada!! Somos sempre um enorme queixume... Seremos mesmo influenciados pelo raio do ritmo melancólico e sofrido do fado?
-Ah e tal, um sol destes e não se pode sair de casa.
-Ah e tal, esta chuva fria que nos molha os ossos e não nos seca a roupa...
A horta não se importa mesmo nada! E na verdade, a roupa também não...
Eu, ainda com o forno quente dos muffins, já misturo as peras no chocolate mentalmente. As receitas formam-se na tal nuvem antes de encorparem as taças e depois as formas. É a parte da adrenalina que vem da criação. O Brownie é só para amanhã, mas é preciso ocupar o tempo.
É parvo, não é? Então nunca há tempo para nada e quando há tempo para tudo ficamos tontos sem saber como usufrir? As pilhas de livros na lista - para ler, não apetece. A quantidade de filmes por ver, não enche as medidas agora. Nada do que interessava nos parece suficientemente útil ou apetecível agora. Exercício é a partir de amanhã ou de outro amanhã e se estiver sol! Arrumar as gavetas com este tempo tão incerto, também não deve ser boa ideia...Plantar as Rosas Albardeiras nem pensar, está frio! E como está pouca luz, a caixa dos óleos e aguarelas também pode esperar. Que canseira, tanto tempo para ocupar. Nada a fazer!
Ou fazer nada, só para ver o que faz o mundo quando estamos de acordo.

Coração na lua

O dia amanhece nublado. Será só aqui ou também no resto do mundo? Aqui é um mundo. À parte do outro.  Já nem me lembro bem o ano exacto em q...