sábado, 18 de abril de 2020

Prelúdio

Há muitos, muitos anos tive um namorado que adorava a minha voz e passava a vida a dizer - Devias fazer rádio.
Eu não vivo sem música. E todas as boas histórias tem um som. Sempre. Há sempre música ou comida no ar!
A vida tem que ter banda sonora mesmo que às vezes seja só dentro da minha cabeça.
Sou a mais nova de quatro e tenho uma memória eficiente, ou tinha, e um conhecimento musical herdado acima da média, que devo ao meu irmão Paulo.
Enfim, parece que reunia as condições necessárias para ter o meu próprio programa de rádio e o dever de partilhar com o mundo do outro lado da antena, a minha voz e o meu bom gosto e conhecimento musical, segundo o rapaz. O amor é cego. Já sabemos. Posto isto, e já completamente convencida, tenho um dos meus impulsos num dia em que vou a passar na avenida de Ceuta (onde era a sede da TSF e da Rádio Energia que já se tinha transformado em FM Radical) e decido estacionar em frente ao edifício e subir ao segundo andar onde peço para falar com o locutor de serviço. Eu tinha uns 21 anos, está bem? É a ternura dos quarenta e a loucura dos vinte.
Subo! O ambiente era informal e, ou movido pela curiosidade ou pelo espanto, o Simões lá me ouviu entre canções da playlist, a confessar entusiasmada e divertidíssima que tinha um namorado que dizia que eu devia fazer rádio e por isso ali estava. Achou-me graça, talvez pela coragem inconsciente, acima de tudo. Convidou-me para participar num programa de domingo com o Jorge Gabriel. E foi daqui, do Ferro Velho e da festa na discoteca mais in dos anos noventa que vim a conhecer o pai dos meus filhos. Ligado à restauração e a cozinhar como um Chef em casa - o melhor que já conheci até hoje - foi-me despertando a vontade de um projecto comum no ramo. E eu apesar de morar sozinha e fazer sempre a minha própria comida estava longe de sentir que tinha nascido para isso. Mas agradou-me a idéia. Porque não? Se calhar, há uma altura para as coisas se revelarem em nós, como aqueles virus - ou serão bactérias? - que temos sempre mas que só se manifestam em determinadas condições. Adiante! O projecto acabou por surgir e a minha função era um género de relações publicas, anfitriã, gestora, patroa. Talvez de tudo isto, tivesse algum jeito para relações públicas quando não estava em fase pré-menstrual ou a lua em cheia. Ou seja, às vezes não tenho jeito nem para as relações nem para publico, pronto.
Quis o destino ou o acaso que nesse projecto trabalhasse para nós uma pasteleira, excelente, por sinal, mas com a qual eu raramente estava de acordo. Vinha de um formato de pastelaria industrial, cake design e essas coisas muito perfeitinhas que não se enquadram nada na minha mente rustica.
As sobremesas têm que despertar as nossas memórias- é isso que a comida deve fazer. A comida e a música, claro. Era a tarte de maçã da minha sogra, o bolo de bolacha da minha tia Melita, o pão de Ló da minha avó Maria do Rosário, o doce de ovos com amêndoas torradas que o meu pai fazia e que dá origem à base das minhas Pérolas. Memórias!
Todos os dias a pasteleira fazia de uma maneira e eu dizia que preferia de outra, por exemplo- uma tarte de maçã na minha cabeça não pode ter um aspecto sofisticado. As maçãs são densas e as reinetas nem devem muito à elegância, são grosseironas, do campo! A tarte tem de ser coerente, brilhar pelos sabores e pelas viagens a que nos transporta até ao tempo em que não se pincelavam os bolos com glaces vendidas em pacotes.
Enfim, a miúda bem se esforçava e quanto mais bonitos e arranjadinhos eram os acabamentos mais eu reclamava. Houve um dia que se fartou e teve a lucidez de me enfrentar e mudar a minha vida… - “Se a Angela nunca está satisfeita com o que faço e até sabe o que quer, porque não faz você?”
E foi assim, com um “acorda e faz tu” que comecei de volta dos fornos e das batedeiras, com aquela sorte de principiante de quem não faz a menor ideia do que está a fazer, mas a não querer dar parte fraca e sempre com muita audácia, como em quase tudo na minha vida.
E curiosamente sem estar muito preocupada com as regras e com aquele rigor que é do senso comum que tem a pastelaria, lá fui arriscando; e melhor que tudo, as pessoas iam gostando mesmo do que eu fazia. Fui abandonando as relações publicas e aprofundando cada vez mais a relação com o açúcar e os ovos, o chocolate derretido e as combinações espontâneas e improváveis.



4 comentários:

  1. Nada como um “ acorda e faz tu” para revelar o potencial de cada um 💪💪💪💪😘😘😘❤️

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  2. E viva o improvável e as combinações espontâneas... Adorei, como e habitual!😍

    Alê

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  3. Também me dizem que tenho voz de rádio 😂😂😂😂😂

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  4. E como se não bastasse, és uma inspiração para fazer e fazer bem (mesmo que às vezes corra mal)! Obrigada! Obrigada! Obrigada! Muitos vezes penso em ti como a Juliette Binoche do Carvalhal BBR😊!

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