domingo, 12 de abril de 2020

Passagem

De todos os lugares por onde já passei, há uns que por razões muito especiais me estão no coração.
Colares tem muitas dessas razões. Tantas! Conheci muitas pessoas que me ficaram e passei por experiências inesquecíveis com luzes douradas de fim de dia e cheiro a Pérolas, lendas, amores perfeitos e jasmins.
Do lado de lá do coreto, ganhei uma amiga. Devia ter uns setenta anos, a minha Casimira. Entrava, tomávamos um café as duas. Cheio, o dela. Quase como a vida que já tinha vivido. Às vezes comia uma fatia dos meus bolos. Com mil cuidados e medo da glicemia.
Rija, com tanta fibra como doçura.
No meio de conversas e desabafos, cresceu-nos um carinho enorme e um dia, nos meus anos, perto do ultimo Natal que passou neste plano, ofereceu-me uma orquídea.
Tenho a certeza que por ser a flor mais especial para ela e bonita e delicada e se calhar é essa a razão de eu nunca lhes ter achado grande graça, às orquídeas.
Nunca fui fã de aspectos tão frágeis que parece que se partem quando tocamos ou subimos o tom na voz.
Eu tenho uma voz grave, dificuldade em sussurros e preciso de abraços apertados sem me preocupar com o ar dos pulmões. Como sou desastrada por natureza, não queria mais preocupações...
Guardei-a porque foi ela que me deu.
De vez em quando lá a olhava pelo canto do olho, afinal é bonita e eu gosto de coisas bonitas, mas prefiro as resistentes, as que aguentam tudo e não as florzinhas.
Deve ter passado o inverno e se calhar meia primavera quando me lembro de a ter olhado outra vez. Com duas folhas verdes enormes, eu com algum sentimento de culpa e ela já sem flor, ainda menos interessante, assim despida.
Nem sei se a terei regado alguma vez nos meses que se passaram. Lembrei-me da Casimira, do carinho, dos abraços, dos nossos cafés e das conversas e deitei-lhe umas gotas de água antes de voltar a esquecer-me dela na janela da casa de banho de cima. Talvez passado um ano, floriu outra vez, já eu nem me lembrava que existia. Olhava para mim com ar doce, florido e elegante, cheia de humildade e cor, a dizer-me que a resistência às vezes é de uma subtileza enorme e que as fragilidades não são eternas nem aparentes e também que há momentos para tudo na vida. Esta orquídea foi uma Páscoa fora de época.
A minha Estrela de Natal também não quer saber das regras do calendário nem do senso humano e em pleno Abril, brota folhas vermelhas.
A pêra rocha que também já floresce aqui por todo o lado e cumpre a primavera, soube eu há pouco que teve origem na Várzea. Em Colares. Isto reforça-me ainda mais a teoria do quanto está tudo ligado na minha vida.

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