domingo, 15 de novembro de 2020

Redundâncias



A casa está vazia. A mãe sozinha. Isso aflige-me. Haverá vírus maior que a solidão?

As ruas estão em silêncio. Cheira a queimadas - folhas secas misturadas com nostalgia. O fumo espalha-se pelo ar do jardim e traz vontade de laços e de abraços apertados que decido transformar em broas de batata doce. Sensações de regresso a casa, é o que se precisa. Raizes.
O tempo está agridoce, o ânimo divide-se entre a resiliência e o cansaço. Se calhar nestes dias era melhor não escrever, nem tentar juntar palavras e limitar-me aos envolventes rituais de cozinha, juntar lamúrias, nozes partidas e erva doce.
Na cozinha os pensamentos não me consomem. Raspo uma laranja. As laranjeiras por aqui estão de lotação esgotada com mais frutos que folhas, manchas luminosas e cheias de vida, no meio da paisagem bucólica e desprendida do outono. As árvores também são mães, com os seus rebentos, uns doces, outros amargos, uns de polpas macias e outros de cascas duras. No fim, somos todos ramos da mesma árvore. As mães são casa, são regresso e abraço, são colo e ombro, conforto e também confronto, às vezes.
No espelho, olho o reflexo e lembro-me todas as vezes que disse que ia ser diferente enquanto me saltam as semelhanças à flor da pele, como sinais do sol de verão.
Não devia ser permitido depois de uma vida a criar raízes e a fortalecer ramos e frutos, ficar ali num género de letargia imposta, sem ninguém a fazer companhia e já quase nada para florescer.
Junto as raspas das laranjas à batata doce assada e vou amassando. São delicadas, as pequenas broas. Pensar que já estamos quase no Natal...mais uns dias e faço mas é bolo rei, que gosto tanto!
Deixo o forno aquecer e vou fazer uma caminhada para abrir o apetite e telefonar para casa de três letrinhas apenas.
"- Boa noite, mãe. Como te sentes hoje? Amanhã levo-te broas abraço".

segunda-feira, 10 de agosto de 2020

Fé e Fado

Desde que me lembro de ser gente que há uma série de tradições que gosto de cumprir a preceito. Sem seguir cronologia a rigor e sem me alongar em listas, lembro o dia de Reis em que é obrigatório comer uma romã da qual se guardam 12 sementes na carteira, uma por cada mês, em símbolo de prosperidade e abundância.
Lá para meio do ano, a Espiga, o precioso ramo colhido que é pendurado atrás da porta até ao ano seguinte e que garante que não nos faltará o essencial.
E claro, as velas aos santos que admiro nos seus dias específicos.
Hoje é o dia de São Lourenço. Já preparei a vela.
A minha admiração requer pesquisa.
É preciso conhecer a grandiosidade que faz merecer o meu ritual. Não sou de me dedidicar só porque sim. Não tenho nenhuma veneração especial por Fátima e até cresci lá perto. A minha Senhora é a da Conceição, padroeira de Portugal. Tenho simpatia por Santa Rita de Cassia das causas impossíveis, Santiago do caminho das Estrelas e Santo Expedito das soluções urgentes.
Com Lourenço de Huesca, o Santo que me deu apelido, foi diferente. Não fui eu que o escolhi, foi ele que me escolheu a mim.
Desde adolescente que sonhava um dia morar nas Azenhas do Mar. Morei.
E mesmo hoje há parte de mim que ainda mora. São Lourenço é o padroeiro da vila. Sem querer, soube há dias que é também o santo dos cozinheiros, no mesmo dia em que descobri que algumas tradições populares da Europa meridional chamam à chuva de meteoros das Perseidas, que ocorre com maior intensidade a meados de Agosto, “Lágrimas de são Lourenço”. Por lembrarem as chamas associadas ao seu martírio.
São Lourenço passou a fazer parte das minhas devoções e hoje vou acender-lhe uma vela enquanto preparo a cacerola de grão para servir com massa ao almoço e lhe peço para olhar por mim todos os dias do meu trabalho.
Que assim seja. 

segunda-feira, 3 de agosto de 2020

Fisica ou Química

Algumas pessoas não gostam nada de mudanças. Eu, se me fosse tão fácil transformar por dentro como é à minha volta, já teria certamente transmutado o meu mau feitio em doçuras de sorrisos constantes e pulmões cheios de capacidade de respirar fundo e fresco quando a temperatura emocional me aquece demais.
Adoro alterar cenários e trocar coisas de lugar, pintar, fazer bricolage, tornar bonito o que é aparentemente desprovido de graça, reciclar objectos antigos, dar vida e brilho ao que já estava triste e sem uso, encostado a um canto. É facil comparar este gosto por promover mudanças com a cozinha que faço todos os dias. Não há muita diferença em pegar nos alimentos e transformá-los em pratos que se tentam não repetir ao detalhe.
Há sempre qualquer coisa que se pode acrescentar ou tirar. Tudo o que fazemos pode sempre ser melhorado. Sei que há pessoas que não gostam nada disto. Precisam daquela necessidade de ter sempre tudo no mesmo sítio para sentirem segurança e se provam determinado prato e gostarem assim, vão querer repeti-lo exactamente com os sabores que os deliciaram inicialmente.
Não é que eu tenha dificuldade em criar raízes e em repetições. Há coisas que faço sempre da mesma maneira há anos e sou muito feliz assim. Há rotinas que me agradam em situações, pessoas e também em locais. Gosto de rituais. Mas nisto da cozinha e das mudanças em geral é a criatividade que traz um frenesim à flor da pele e aí não podem existir regras nem limitações.
A primeira vez que tentei fazer uma Batatinha à Alentejana que ficou a marinar de véspera em vinha d'alhos com os cubos de tofu, temperei com louro e tomilho fresco, deve ter sido para ir buscar a coragem de principiante. O tomilho é a erva da coragem e o louro é consagrado às vitórias, só podia correr bem! Mas hoje, depois de um fim de semana de obras e mudança de decor, feliz com o resultado mas de corpo cansado e denso da falta de praia, sem vaso de tomilho por perto, vou usar alecrim. Sei logo ao abrir o forno que esta mudança vai fazer com que estas batatinhas gulosas fiquem a ganhar.
Ora, esta alteração pode enervar quem já conhece este prato e adora tomilho, mas também já mudei em relação às reacções das pessoas, quando me sinto convicta do que faço. É o meu jeito. Todas as cores são bonitas e tudo tem direito ao seu momento de glória. Todos os sabores fazem falta. E no fim, são as experiências o que levamos connosco. Na barriga e no coração. 

quarta-feira, 22 de julho de 2020

A cor púrpura


"A água de nevão dá pão; a de trovão, em parte dá, em parte não."
Adoro a sabedoria popular! Ontem caiu tanta água de trovão que parecia que até o céu ia cair também.
Em miúda tinha pavor de tempestades e trovoadas, depois fui-me lembrando da minha verdadeira natureza, afinal nasci na pré revolução. O que não me agrada é a antecipação. A temperatura excessiva, a pele a colar e o ar denso e pesado.
Gosto-lhes do som, dos brilhos incandescentes no céu, do compasso de espera entre trovões, do cheiro que fica na terra e do silêncio aliviado que aparece no fim.
Sinto as trovoadas como a necessidade do caos para instaurar novamente a ordem. Já quando estou em tempestade interior, (quem nunca?) há duas bonanças que procuro. Praia e cozinha. A praia baixa-me o ritmo cardíaco. Olhar para a linha do horizonte no mar, lembra-me de ver as situações de outras perspectivas. A maresia entra-me na respiração profunda como um filtro e o banho na água salgada, quando aguento as temperaturas do oeste, renova-me o ânimo e enche-me de inspiração. Na praia, arrumo tudo no sítio certo, paro e respiro. Na cozinha, tal habitat natural, não há pausas, é um constante bailado criativo. Não importa se chove ou se faz sol, tudo é natural.
Sou eu, os alimentos, a música que toca, a luz que entra pela janela ao fim do dia, a minha hora favorita, o som dos pássaros lá fora. As tábuas de corte, as colheres de pau, o fogão e as facas. Em época de batata doce roxa, tudo isto é elevado ao seu expoente máximo. A maioria das pessoas olha para uma batata disforme, acastanhada, cheia de pó da terra e praticamente inodora e não vislumbra o potencial nutrivo nem a beleza escondida no seu interior. A batata doce é um milagre. A roxa é a mais bonita. Tem a polpa mais macia e a cor mais irresistível. Gosto de as assar com tempo que assim concentram mais os sabores do interior. Servem para quase tudo, sopas, purés coloridos, rolos de forno, chips ou tartes. Eu não resisto a tarte de batata doce de cor púrpura. Amasso a polpa com farinha de amêndoa e vagem de baunilha. Dou-lhe a textura cremosa que a vai segurar depois de fria com óleo de côco. Não precisa de açúcar nenhum. São tão doces como os momentos da vida quando aprendemos a apreciar tudo o que faz parte da natureza. Mesmo as tempestades.

segunda-feira, 20 de julho de 2020

Despertar

-Queridas pessoas que passam a vida a lamúriar e a queixar-se de tudo, plenas de resmunguice, experimentem passar um dia dentro de uma cozinha a fazer comida e jejum em simultâneo.
Estou a proibir-me de lamber dedos, depenicar as pontas das cenouras da sopa, fugir a sete pés da ideia de ir comendo os pêssegos enquanto os corto para a tarte. Não que precise provar, conheço os sabores de cor. Mas por norma, eu a preparar comida, tenho algumas semelhanças com um esquilo ou outro roedor qualquer que agarra, põe na boca, mastiga e armazena para depois. Isto sim, verdadeira ironia do destino!
Na última conversa astrológica que tive com o meu amigo João Paulo, que é brilhante nessa área, lembro-me de me ter dito que nos anos próximos iria sentir-me com a minha verdadeira idade.
Isto passou-se há uns três ou quatro anos e na altura fez-me uma confusão imensa. O que toda a vida senti e transmiti aos meus filhos, é que o corpo vai crescendo, as emoções vão-se adaptando aos caminhos e às histórias de que somos protagonistas, mas a criança interior está sempre lá, a lembrar-nos da nossa essência e do que - realmente - importa.
Hoje, com 46 primaveras e uns quatro anos depois da conversa com o João, começo finalmente a perceber o que ele me queria dizer. Acho até que começou a ficar mais claro há quase um ano. O relógio mudou ao aproximar-se dos 45. A criança está cá, graças ao grande Cosmos, mas começa a ter noção que há coisas que se estão a metamorfosear. É bom, na sabedoria que nos traz conforto ao que sabemos que somos e não abdicamos e, também flexibilidade para compreendermos que em determinadas situações conseguimos ser melhores, diferentes, com um poder de adaptação e agilidade de processamento, que sempre tivemos, mas que estamos agora a tomar cada vez mais consciência.
A parte mais difícil de assimilar, é que o nosso corpo sempre teve noção disto e agora mostra-nos que somos nós que estamos desfasados no ritmo. O espelho confirma. A balança susurra. Os botões dos vestidos saltam. Os ténis pedem caminhadas e os fatos de treino escondidos no fundo das gavetas teimam em voltar ao activo.
Os pulmões empurram com necessidade de respirar melhor e cérebro lembra que precisa de mais oxigenação para ontem! Não há como evitar. É preciso alterar hábitos e rotinas, dar carinho e cuidado, criar regras para tomarmos conta de nós como gostamos de tomar dos outros.
O cheiro da vagem de baunilha na Tarte de Pêssego começa a desviar-me o foco. Acordei às oito e em circunstâncias de go with the flow, já tinha comido umas belas torradas com a caneca de café cheio de espuma. A meio da manhã já marchavam dois pêssegos da caçarola que os cozeu para a tarte e, de certeza, uns punhados de nozes ou o que me passasse pela frente, entretanto. Mas isso era a outra eu, a de ontem.
Hoje é dia de voltar à sintonia com o corpo e com o resto. Os impulsos que esperem! Agora, vou almoçar um copo de seiva com sumo de limão e caiena e fingir que não estou a cheirar nada do que está à minha volta. 

sexta-feira, 17 de julho de 2020

Orbis

Acabei de ver uma estrela cadente. O céu está lindo e a noite cheia de sons de silêncio da natureza.
A temperatura tem estado tão elevada que as noites frescas nos parecem um mito campestre distante. Jantamos no terraço à luz de velas e da lua minguante.
Quando se ama e se cozinha para outros, uma refeição nunca é apenas uma necessidade fisiológica. Alimentar nunca é só uma rotina. Há sempre todo um cenário que vai muito além das matérias no prato.
As velas não são exclusivas de rituais de conquista. A toalha é mais que uma base têxtil de suporte a utensílios, os copos são mais que um recipiente, a comida não será jamais uma simples forma de recarregar o corpo com energia nem tampouco de somente satisfazer a gula.
É preciso ver sempre tudo além do óbvio mundano.
Há poesia e uma razão maior quando se faz com amor.
Em tempos participei num workshop em Sintra com a querida maga Isa, com quem aprendi muito sobre o Egipto, além das icónicas pirâmides.
Os egípcios acreditavam que determinada simbologia tinha poderes mágicos e marcavam o pão com um utensílio idêntico ao ferro que usamos para queimar o açúcar no leite creme, porque essas marcas, esses símbolos gravados na comida, ao serem ingeridos transferiam a sua magia aos comensais.
De certa forma, acredito que em tudo o que colocamos uma boa intenção - amor - essa magia, a verdadeira magia, afinal, acaba por passar para quem nos rodeia.
A entrega e dedicação na escolha do detalhe, a toalha, o menu de acordo com o gosto de quem come, as velas que dão a média luz que nos lembra que há mais brilho quando está escuro, o tempo que dedicamos a ralar os vegetais para a salada, para que tenham os sabores e as texturas ideiais mas que as cores também sobressaiam e tornem a salada numa paleta que lembra um quadro, porque também uma salada, é muito mais que um mero acompanhamento. Os frutos vermelhos que flutuam nos copos de cristal que pertenceram ao enxoval de casamento da minha avó, o céu cheio de estrelas e algumas até caiem só para podermos pedir desejos. Vou desejar, que num mundo que tantas vezes me parece uma noite escura, tenha sempre a capacidade de poder iluminar as vidas de quem me rodeia. 

quarta-feira, 15 de julho de 2020

Deméter

Hoje vou fazer Spring Rolls e acordei entusiasmadíssima a pensar nas cores imensas dos legumes e das frutas que quero usar no meio dos noodles que vão dar corpo às folhinhas de arroz.
São curiosas as razões que nos movem em determinados sentidos, para certos caminhos e por vezes também são inexplicáveis, mas não neste caso específico.
Uma vez, contei resumidamente a minha história de vida e disseram-me que parecia que já tinha vivido umas três numa só.
Às vezes sinto isso, mas nunca me esqueço que tenho muita sorte e que sou uma verdadeira privilegiada.
Também me perguntam porque decidi mudar-me para o centro do país e se calhar, para a maioria das pessoas seria importante uma quantidade enorme de factores de selecção ponderados.
Claro que a proximidade relativa à capital e as boas escolas para as crianças foram tidas em consideração, mas no meu caso e eliminando as condições fundamentais para o todo, o que me moveu foi a fertilidade do local. Não sei se me faço entender. Já morei em quase todas as zonas do país a norte do Tejo. Falta-me o sul, o Alentejo, isso ainda está para acontecer um dia. Agora estou aqui, no meio, na simetria que me faltava. Nunca pelos sítios por onde passei havia esta fartura a brotar da terra. Para onde quer que me vire nasce alguma coisa do chão ou dos ramos das árvores. Pereiras, macieiras, pessegueiros, ameixeiras, videiras carregadas de uvas, campos inteiros cultivados de acelgas ou batatas, couves, melões ou pepinos. Para quem dá importância ao que come, a zona é um autêntico festim. Atenção, uma das principais atrações à volta é a Praça da Fruta, por isso, o encantamento não foi só a mim que apanhou. À minha frente tenho beterrabas, cenouras, pepinos, couve roxa e alho francês que trouxe da praça. Também já parti em tirinhas a manga e o abacate. Está muito calor e só apetecem saladas e vegetais frescos e hidratantes. Pois, já agora é melhor fazer um chá gelado, tenho umas folhas de hortelã a libertar cheiros que sorriem para mim. Estes rolos, como as folhas de arroz são muito finas e vou recheá-los com muitas cores bonitas ficam com um aspecto que parecem pintados de arco íris.
Somos o que comemos, por isso parece-me bem.

sexta-feira, 10 de julho de 2020

Clepsidra

Há de certeza um ou mais pontos de viragem durante a vida, tipo, a puberdade, a maternidade e a menopausa e ainda as rectas, curvas e contra-curvas que apanhamos pelo meio e que nos vão levando pelos caminhos com mais ou menos contorcionismo.
Sejam os factores biológicos, celulares, metabólicos, ou cronológicos - tanto faz - é o tempo, o tempo em nós.
Até uma determinada fase da vida, não sei quando ao certo, dá sempre para tudo, os dias parecem não ter fim, damo-nos ao luxo de ansiar pelos fins de semana, férias, pelos jantares, passeios, tardes de sofá ou festarolas com os amigos.
Sempre uma vontade que os dias passem rápido para usufruírmos disto ou daquilo. Depois, vem o tal ponto de viragem e tudo muda e nem sabemos como.
-"Já hoje é quarta feira? Ainda ontem foi domingo" ou " Vamos a meio de Julho? Parece que acabámos de arrumar os enfeites de Natal".
E em simultâneo neste ritmo alucinante vamos tentando pôr amizades em dia, cumprir promessas de visitas por fazer, os jantares e passeios vão-se adiando e afazeres ficam por consumar, porque o tempo parece viajar mais rápido que a luz e muito mais que nós.
Que saudades de uma viagem! Não que não me farte de andar por aí em espírito, em praias de mares mornos e sem ondas ou em densas florestas de chuvas tropicais, ou no meio de mercados coloridos, cheios de frutas e legumes frescos, especiarias e flores, mas apetecia mesmo era pegar na mochila e levar também o corpo para lugares bonitos. Tenho é que me levar para a cozinha que hoje a viagem vai ser outra, se bem que é quase uma ida a Itália, a minha Lasanha Vegetariana, que me lembra outra vez dos por fazer e dos urgente ir. Florença espera-me há uns anos e por três vezes estive para ir e tive que adiar por razões maiores.
Vou dedicar o menu a essa viagem destinada por cumprir, decido eu enquanto tiro a pele do tomate para o molho!
Já apanhei as acelgas e o manjericão e a cebola já palpita no azeite com o louro. Quem me dá massas frescas, dá-me quase tudo! Como se diz em Roma - Mangia bene, ridi spesso, ama molto.

segunda-feira, 6 de julho de 2020

A Viagem

Cada vez que dou por mim estendida na toalha, de pés na areia, cheiro e som de mar e o sol a brilhar, sinto que sou uma verdadeira privilegiada! A temperatura amena e a praia quase vazia. Ainda passei uns minutos a fazer uma das minhas coisas favoritas - procurar conchas bonitas e seixos peculiares.
Já tenho uma colecção tão grande de pedras que um dia construo uma casa, penso eu com o exagero típico que me caracteriza. Esta mania de coleccionar calhaus e afins de certeza que vem da minha irmã Margarida que julgo que ainda hoje tem um belo espólio de fósseis e pedras bonitas. Encontrei uma linda junto ao mar no Baleal, castanha com três riscas douradas que parecem pintadas com régua de tão perfeitas e simétricas que são. Que tesouro!!
Hoje mereço usufruir! Passei a manhã a tentar cozinhar o perfeito byriani de legumes, e juro, juro mesmo, que se não ficou perfeito, esteve quase lá perto. E eu nem tenho grande jeito para arroz. E sim, já experimentei todas as fórmulas e já aceitei a condição. Além disso, prefiro usar o integral e esse raramente me falha.
As especiarias rebetam de vida no azeite quente e na cebola alourada. Cheira a cravinho, cominhos, curcuma, canela e coentros, os cinco 'c' dos sabores essenciais na cozinha indiana. Ou na que eu tento cozinhar, pelo menos. E falta o cardamomo, que me vai dar um suave tom alimonado.
Um dia hei de voltar a morar junto ao mar, divago eu no meio dos aromas das especiarias que me transportam numa viagem cheia de cor. Cada vez dou mais valor aos prazeres simples. Podem tirar-me da praia, mas não tiram a praia de mim.
Não compreendo bem, nesta minha mente optimista e com predisposição automática para ver o melhor das situações, como é que há pessoas que acham que amadurecer não é bom. Eu olho para trás e para as parvoíces que me tiraram noites de sono e trouxeram desassossego e ansiedade e respiro fundo em gratidão por esta capacidade em crescendo de conseguir filtrar o que mais me acrescenta do que me tira simetria e equilíbrio.
Tantos anos para assimilar o que à partida sempre foi óbvio. Aceito de bom grado as rugas e vincos de expressão, o metabolismo lento que me assentou nas coxas com vontade de ficar e que me lembra do quanto sabe bem acalmar o ritmo, em troca da sabedoria adocicada que sinto que a idade me vai trazendo.
E neste ritmo envolvente de mexe tacho, com os perfumes dos sabores que vão dançando em vapores pela cozinha, sonho com a casa em frente ao mar com todas as pedras que vou apanhando, o alpendre coberto e a cama de rede, os tomilhos e alfazemas ao fundo e o sol dourado a deixar-se ir num novo dia.

terça-feira, 30 de junho de 2020

Intervalo

Valha-nos a Sta padroeira dos optimistas que para onde quer que me vire só ouço lamúrias! Ando na praça de phones nos ouvidos. A música protege-me do que prefiro não ouvir. Agora que até sinto que estou num momento intervalo, deixem-me usufruir da minha bolha, que logo volto!
O momento intervalo é uma daquelas fases em que sentimos harmonia em nós mesmo que à volta a coisa possa estar em desassossego. É assim uma espécie de bem estar sereno em que parece que tudo está no sítio que deve estar e tem sabor a intervalo do grande Cosmos. Ou fizemos alguma coisa para merecer ou o Cosmos está distraído com outra coisa qualquer. Seja como for, há que deixar a bênção fluir e agradecer.
A abundância da fruta local deixa-me feliz! São bancas cheias de alperces, pêssegos, abrunhos, cerejas e morangos. E melões brancos e verdes, meloas e melancias. As pêras da terra também já estão boas para colher e foi a isso que vim. Pêra rocha com alperces, soa-me a combinação perfeita para o que preciso.
Esta fartura de cores e cheiros, a riqueza que a natureza nos oferece é quase o que basta para me encher de gratidão e começar o dia a sorrir. Ter trabalho e pessoas para alimentar também. E saúde e coragem, fundamentais, claro! E abraços de quem amamos. E um pouco de sol e mar e já temos quase tudo!
É dia de experiências novas e vou pegar nas pêras e alperces e fazer uma baklava. Há qualquer coisa na comida étnica que me encanta. Não que a nossa gastronomia não dê pano para mangas ou nozes para nougat mas parece sempre que as especiarias e ervas do oriente me dão uma sensação de conforto, tipo regresso a casa. Um dia tive uma cartomante que me disse que numa outra vida fui da India e ainda noutra da Grécia. É um facto que adoro comida indiana e mitologia grega!
E pelos vistos fartei-me de andar por outros mundos a reunir uma carrada de delícias na alma para as transportar agora para a cozinha e lhes dar vida do meu jeito. As pêras já cozem com os alperces em lume brando com cardamomo, pau de canela, cravinho e flor de anís. Vão apurando devagarinho e libertando sabores e sucos até ficarem em geleia para humedecerem as folhas de massa filo que já estão polvilhadas de pistacios torrados e picados. Ai se as palavras tivessem cheiro! 

terça-feira, 16 de junho de 2020

Sina


Dia de folga e de passear com as crias antes que cheguem à idade que preferem outras companhias. Bem, na verdade já chegaram, mas ainda temos momentos muito únicos e personalizados que valem ouro e valerão memórias ainda mais preciosas um dia. Passeámos pela baixa Lisboeta. E como verdadeiras crias que conhecem os hábitos intrínsecos da progenitora lembraram ao passarmos na igreja de São Domingos - "Mãe, nem acredito, estás a passar em frente a uma igreja e não entras! "
Eu explico. Não é uma questão de religião nem tampouco de fé que não tem paredes para mim. Pode ser do ritual, daqueles que gosto mesmo de cumprir, mas começou com uma razão e essa razão há-de ter um nome, mas eu não sei qual é. É um género de fórmula que existe dentro das igrejas que me encanta - a relação ou proporção equilibrada entre iluminação-cheiro-temperatura.
Não sei explicar melhor, mas este factor arrasta-me magneticamente para o interior e faz-me sentir rendida, cheia de gratidão e serenidade. Por norma, acendo uma vela e faço um pedido ou um agradecimento à Luz da chama divina que também faz parte de nós. Esta fé muito própria e isenta de dogmas, dá-me estrutura, fortalece-me e inspira-me. Vou contando que ali em baixo na rua do Ouro era a loja do meu tio avô Manel pequeno e que a minha avó Maria do Rosário tinha trabalhado lá antes do meu avô a levar para o Alentejo, coitada. E eu até adoro o Alentejo. Sonho um dia ter um monte com um alpendre virado a oeste para ver o por de sol com cheiro de maresia e luz dourada, no meio de plantações e de charcos com rãs e melros, claro. Melros, sempre! Sinfonias perfeitas a sul. Mas o caminho agora é outro, ainda.
Seguimos para o supermercado chinês. Não se passa pela baixa sem dar um salto ao Martim Moniz. Pelo caminho ainda espreitamos a melhor livraria Lisboeta onde teria ficado o resto do dia se os miúdos não me empurrassem para fora.
A Sá da Costa é um mundo. Um dos meus mundos favoritos.
Tanta pressa para sair e eu ainda nem tinha chegado à secção de culinária...
Já bate a fome e prometi que fazia almoço. É sabido que na condição de mãe cozinheira compulsiva não há dias de folga de saciar filhos. E apesar de tudo é um enorme privilégio alimentar as minhas barrigas favoritas em todo o universo. Comprámos leite de côco, cajus, paus de canela - cinnamomum verum - com um sabor mesmo à séria e mais intenso que a comum, a cinnamomum cassia, também trouxemos curcuma, sabonetes de sândalo e Fortune Cookies. "It is up to you to create your own adventures" diz o meu. 



domingo, 14 de junho de 2020

Com tradições


Hoje é dia de almoço de familia. Tem que parar tudo que é preciso ter tempo para o que importa. Vamos a Alcobaça ao meu irmão Paulo. Tive a sorte de crescer no meio de uma familia grande e bem estruturada, da qual ainda sinto que colho valores que os meus pais nos semearam. O meu avô Gregorio celebraria hoje 114 primaveras se fosse vivo. A minha Mónica também faz anos. E Pessoa também.
É definitivamente dia de festa!
Eu que me aborreço facilmente com rotinas, recordo com uma imensa doçura pequenos detalhes que me tornaram mais rica, se bem que os anos setenta até tiveram outros detalhes nada poéticos e ligeiramente traumatizantes como o deprimente quadro do menino da lágrima de Bragolin, indispensável em qualquer decor a preceito à época, as bocas de sino, as patilhas enormes do meu pai ou os colarinhos gigantes das camisas.
Já no panorama musical quase todas as boas bandas desta década ainda existem. E na verdade os anos oitenta não foram muito melhores na questão das vestimentas nem da música, mas o que lá vai, lá vai.
Coisas boas que ficam, é o mote.
Os rituais familiares. Praça ao sábado de manhã. Que gozo! Dentro do edifício e à volta. Havia de tudo e toda a gente se conhecia. Por cima ficavam os produtores de legumes e frutas e a padaria - ai o pão da minha amiga Susana!!! Aprendeu a arte com a mãe Elisa - que era quem vendia na praça durante a minha meninice - ainda hoje me faz água na boca só de me lembrar...caseiro, super crocante, robusto e com cheiro a conforto.
Em baixo, o peixe e tudo para agricultura e criação de animais e as plantas e flores. À volta, a minha zona favorita na altura, os brinquedos e as roupas.
Aos domingos iamos à missa. Havia uma secção própria nos roupeiros só para a missa. E também tive uns sapatos de verniz pretos, pois claro - às tantas é por isso que adoro andar descalça. Domingo era dia de aperaltar. Interminável a duração da palestra, bocejava eu, enquanto sonhava com os colares de pinhões e com os tremoços da banca da dona Maria mesmo à saída da igreja. A seguir, almoçar fora. Tradicional português, claro. Todo um mundo diferente na altura.
Hoje quem vai cozinhar é o meu irmão e tenho a certeza que vai sair uma refeição digna de banquete do forno de lenha que ele construiu. O meu irmão é um artista, sorri a nossa mãe, orgulhosa. As outras duas dizem com algum ciúme saudável que eu e ele somos os dotados. Ele em quase tudo e eu na cozinha. Palavra de manas do meio, também muito prendadas, enquanto debicam talos de aipo e cenouras em hummus de curcuma. 

terça-feira, 9 de junho de 2020

Era uma vez no Oeste

Tantos dias de espera por um lugar ao sol para estender a toalha e carregar baterias, caiem por areia na praia que tem gente e carros a mais. Tivemos todos a mesma ideia. Eu prefiro abdicar e apanhar sol no terraço.
Não sei se a idade nos transforma ou se revela a essência que vamos esquecendo ao longo dos anos.
Lembro-me de nos meus quinze anos sentir que precisava de um espaço maior para evoluir e que a pequena e sossegada vila onde morava com os meus pais, não me chegava.
Hoje, crescida e aparentemente criada, fujo a sete pés de sitios pejados de pessoas, onde parece que tudo acontece e fujo para onde consigo encontrar paisagens vazias, silenciosas e paradas no tempo, com cheiros de mar, de árvores carregadas de frutos ou de campos de flores.
Há que seguir o ritmo que a vida nos pede. Mais dias virão e o mar não foge.
No caminho de volta passo no mercado bio e compro alperces. São como um regresso a casa. Eram as preferidas do meu pai. É incrível como os caminhos nos vão afastando das memórias que acabam sempre por voltar quando lhes apetece. Têm vida própria, toda a gente sabe.
Ainda ontem falava do significado de "casa" para mim e como julgo estar relacionado com tudo o que é mais forte que nós, como o amor, ou a fé e também as memórias.
O cheiro dos alperces ao descaroçar traz-me de volta. A polpa desfaz-se entre os dedos de tão maduros e sumarentos que estão.
É preciso fazer uma tarte! Melhor ainda, um crumble! Com farinha de aveia e noz pecan! Devia era sossegar, aproveitar o descanso para ler ou arrancar ervas da horta ou pura e simplesmente imitá-las e vegetar, mas como posso sair da cozinha com uma cesta de alperces perfumados e maduros a olhar para mim?
Fazer tartes é definitivamente "casa". Ontem foi de ameixas. Acabadinhas de apanhar da árvore. Uma no cesto, duas na boca, algumas no forno.
Que rica primavera, quase verão!
Andei eu anos a achar que era uma verdadeira cosmopolita quando tudo o que me vale na vida está aqui, no campo, nesta "casa". 

quarta-feira, 27 de maio de 2020

Dias doces

Água salgada - alma lavada. Diz a sabedoria popular. O mar e o sol são mesmo uma benção... Saio da praia sempre mais leve. Não de corpo, infelizmente. Bom jeito me dava deixar uns quilinhos na areia. Ainda estou a inspirar o cheiro de mar para levar um pouco comigo e reparo que já me alonguei no lazer matinal.
O povo também diz que em casa de ferreiro o espeto é de pau, mas não contempla as cozinheiras compulsivas, esta teoria. 
Por um lado, ainda bem, pois fico sempre com a sensação que me falta qualquer coisa quando fico muito tempo fora da cozinha, além disso, a comida vegetariana que se encontra fora, deixa um pouco a desejar. Combinámos um piquenique e vou preparar uns burguers de cenoura, noz e cogumelos e burritos de batata doce e feijão preto. De tão entusiasmada que estou até o pão de beterraba e os crepes quero fazer. Que saudades de estar com amigos e apanhar sol enquanto se petisca e se bebem limonadas geladas e afins!
Quando era miúda, os piqueniques eram comuns, no pinhal, com churrascos, camas de rede e mantas no chão, raquetes ou jogos de cartas à sombra fresquinha na beira do rio Lis. Tardes de memórias deliciosas que faziam render os dias bonitos que ainda chegavam para ir à praia depois da digestão, para terminar a preceito. O ar quente e o calor eram previsíveis, mesmo que ao cair do sol fosse aconselhável um casaquito leve para os mais friorentos, como eu. 
Agora já não há meia estação. É toda uma panóplia de peças de roupeiro desprovidas de época meteorológica. 
Os piqueniques trazem-nos aquela visão poética digna de quadro de Monet - chapéus na cabeça e vestidos de seda em campos de malmequeres e papoilas, mas, para mim que passo a vida a tropeçar e a estatelar-me no chão, que não consigo comer sem ficar cheia de migalhas e tenho uma dificuldade enorme em ficar quieta no mesmo sítio durante muito tempo, é de certeza preferível vestir uns jeans, uma t-shirt confortável e calçar uns ténis para ter a certeza que não falho a posição vertical. Nada garantido, ainda assim. O mais provável é que enquanto os adultos conversam e bebem vinhos rosés, eu pegue na limonada e me deite a rebolar com as crianças. Diz que brincar aumenta a imunidade.

quinta-feira, 21 de maio de 2020

Folclore

Papoila, malmequer, alecrim, videira e trigo, com um toque pessoal de lúcia-lima, para a boa disposição - Espiga apanhada logo que consegui, para não esquecer.
Esta necessidade de cumprir as tradições, impõe cá um rigor no psicológico, que no ano passado, que só me lembrei no dia a seguir, fiquei com a sensação que nada bateu certo depois. Já descansada e com a sensação de dever cumprido, começo a separar gemas de claras e o chocolate já derrete no banho Maria. De onde virá o nome do processo, a propósito?
Bolo de chocolate leva-me a um dos livros que mais gostei de ler até hoje.
Poucas companhias me dão tanto prazer como a de um bom livro, não querendo desvalorizar as pessoas da minha vida, claro. Nos livros, independentemente de quem os escreve ou da história em si, considero bom, se me flui facilmente logo desde o início. Gosto de leitura compulsiva, de palavras que controem histórias que despertam a curiosidade, que nos envolvem como claras batidas em gemas açucaradas, e alimentam a vontade de não largar o livro enquanto não se chega ao fim. Nunca, mesmo nunca, me atrevo a espreitar as últimas páginas antes de terminar. Detesto batotice! Inclusivamente, quando me aproximo dos últimos capítulos tento moderar o ritmo só para prolongar o gozo que sinto e manter a companhia durante mais tempo.
- "Como água para chocolate" da Laura Esquivel, foi-me sugerido por uma amiga, tinha eu vinte e poucos anos.
-É a tua cara- disse-me, a Patrícia.
Fala de amor, claro. Sou uma romântica incurável... Mas muito mais que romance, é a história de Tita, a personagem principal, e a emoção que passa para os pratos que cozinha, a entrega e paixão com que o faz e como o seu estado de espírito acaba por contagiar, literalmente, a sua comida e quem a prova.
Tita tornou-se parte de mim muito antes de eu perceber. Só descobri a minha paixão pela cozinha mais de uma década depois de a ler, e apesar de ter a certeza que dificilmente algum dia lhe chegarei aos calcanhares, fui contagiada por ela.
Isto dos contagios tem coisas boas, como no riso e nos bocejos, às vezes nas canções, nem sempre as que mais gostamos... Sabe-se lá porquê, passei a manhã inteira com o refrão da Nossa Senhora do Marco Paulo na cabeça - nem me lembro de a ter ouvido em algum lado - e em constante repeat, que de tão envolvida que estava, já nem sabia se havia de cantar, rezar ou tentar ouvir outra coisa à séria para mudar a frequência.
Há coisas que não têm explicação, pronto. Com as mãos da Senhora, de Tita ou as minhas, o bolo entra no forno e a espiga já está pendurada atrás da porta para que nada nos falte até à próxima quinta-feira de Ascensão. Nem chocolate, nem pão. 

sexta-feira, 15 de maio de 2020

Pedincelo

Aleluia! Está sol! Choveu sem parar três dias seguidos. Fiquei a pensar que durante uns tempos é melhor não dizer que a chuva faz falta. É preciso um pouco de sol, agora. Está tudo demasiado ensopado e frio. 
Espreito da janela da cozinha.
Apesar do desconsolo em nós, nota-se uma diferença incrível nas hortaliças!!
Tudo emproou e demarcou terreno. Os espinafres duplicaram o tamanho e os feijões que mal se viam, já trepam. Até as alfaces francesas que são mais sensíveis mostram o que valem.
A chuva faz falta à horta, pronto.
Limpo as migalhas das torradas da mesa de mármore para começar a arranjar os morangos. Ponho o avental e o lenço na cabeça que me faz me sentir que estou pronta, como se carregasse num botão de on. Falta música! As pequenas rotinas que dão conforto e a sensação que tudo está no sítio que é preciso.
Manias de cozinheiras compulsivas.
Os morangos cheiram tão bem! Nunca conheci ninguém que não gostasse deles. Já conheci quem não gosta de chocolate! E até de batatas fritas, que me parece quase impossível! Mas de morangos toda a gente gosta. Deram-nos uma carrada deles e é preciso arranjá-los, lavá-los bem e retirar-lhes os pedunculos.
Será o formato em coração ou o encarnado carnudo que os torna tão irresistíveis? 
Bem, são o fruto de Afrodite e também deve ser por isso que são usados na fase da conquista dos amores.
Com champanhe. A mim, conquistam, se o champanhe for à séria, com um bom equilibrio entre o doce e o seco que arrepia a boca com bolhinhas pétillantes. 
Isto parece petulante, bem sei, e até faz sentido aqui - um francesismo fundamental para transmitir a ideia com a palavra mais bonita e completa. E claro que tem que ser bebido numa flute!
Esta necessidade de dar às coisas a sua devida importância como se de uma demanda se tratasse, pode ser um traço de personalidade um bocado irritante, confesso, mas a idade traz-nos um género de estatuto que permite abrir mão de umas coisas, enquanto assumimos outras e as aceitamos e pronto. É uma mania, só gostar de champanhe em flutes e vinho em copos de pé alto. Mas atenção, não faço birra, facilmente bebo água e aí até pode ser directamente da nascente. E nos morangos também dispenso o açúcar e às vezes até a água para os lavar. É apanhar e meter na boca sem dó nem piedade.
Estes já estão lavados e partidos, vão encher uma tarteira e ainda hão-de chegar para uns frascos de compota.
Que sorte, merecer estas dádivas! E que sorte ter bocas para alimentar e conquistar. Sem champanhe, hoje não há champanhe para ninguém!

 

quarta-feira, 13 de maio de 2020

Brilho

Nunca fui noctívaga. Gosto de deitar cedo e de acordar antes do despertador numa de lhe mostrar que quem manda sou eu.
Sou do dia, da luz e da clareza, e na verdade também sinto que vou perdendo energia à medida que o sol se vai.
Às tantas, sou uma planta ou um painel fotovoltaico.
Também gosto deste dia, hoje. Treze sempre me deu sorte e o de Maio lembra a energia feminina sagrada e cuidadora. Acendo uma vela. É ritual.
A temparatura baixou. Ou são as nuvens rechonchudas que vão pairando e nos oferecem as quatro estações numa só hora. Muda tão rápido que nem há tempo para queixumes. Ai, o sentido de humor do universo em todas as suas formas de expressão!
Sem querer, ouço as notícias enquanto tomo o pequeno almoço. E até acordei cheia de fome.
De há uns anos para cá evito ver os telejornais e prefiro escolher onde vou buscar a informação. Limito-me às gordas, para estar minimamente em sintonia com o que se passa no mundo.
Nem sempre estou, ainda assim. E às vezes, ainda bem.
A idade impele-nos a dar primazia ao que nos faz bem e é por isso que ligo o spotify na lista "Oxitocyn" e começo a picar uma cebola roxa que vai despertar devagarinho no azeite com o aipo e o tomate que dão base ao meu ragout. A seguir junto as lentilhas. E quero homenageá-las, a propósito! Toda a gente faz um sorriso amarelo ao ouvir falar delas, coitadinhas...
Quero fazer um elogio às lentilhas!
E também às beterrabas, aipos rábano, couves pencas e de bruxelas, nabos e todas as coisas no mundo que são maravilhosas e altamente eficientes mas desprezadas pelo franzir de sobrolho da ignorância humana! Faça-se justiça!
Prometo elevar - todos os legumes e frutas feios, toscos, simples, puros e muito subestimados - à categoria de comer e chorar por mais!

terça-feira, 12 de maio de 2020

Sinfonia

É certo que há detalhes que são mais nossos que a impressão digital. Pormenores, nuances, peculiaridades que às vezes passam despercebidos a olho nú aos outros e até a nós (que nem percebemos a respiração, apesar de ser vital).
Alguns até podem enervar os mais sensíveis ou se calhar os que simplesmente vibram de uma forma diferente.
Factos:
-Sai um single de uma banda que gosto muito - é dado adquirido que é preciso ouvi-lo em repeat todo o santo dia!
-É época de cerejas ou de favas. 
Obviamente que não se come outra coisa. 
A estação passa a correr! Depois, pode-se avançar para os pêssegos e alperces, figos e até para os espinafres e nabiças que são verdes menos sazonais. 
E depois, repetir todo o processo.
Há obviamente uma intenção maior nisto, além de enfardar como se não houvesse amanhã ou exasperar os ouvidos e a paciência de quem rodeia. É preciso absorver. Consumir, num pacto de fusão até que a letra e a melodia toquem em nós sem precisar escutar a canção. 
Nas frutas ou legumes, claro que é para armazenar os sabores que nos vão preencher os espaços vazios quando acabarem as colheitas e permitir uma espera serena até o ano seguinte. 
O mesmo acontece com o pôr de sol diário - e ninguém me venha dizer que é sempre igual - ou com o cheiro das alfazemas e das rosas e o som do chilrear dos pássaros quando sabem que é primavera. 
Há que entranhar! Deixar que o que é bonito no mundo se torne parte de nós.

domingo, 10 de maio de 2020

My cherry amour

A primavera chega oficialmente quando chegam as cerejas. Ritual obrigatório - pedir um desejo na primeira trinca! Porquê pedir desejos à primeira cereja do ano? Não faço ideia. Já é um hábito de há tantos anos que nem sei como o ganhei... Todavia, as cerejas são mesmo especiais. Por alguma razão se colocam no topo dos bolos. A única coisa melhor que um bolo, é um bolo com uma cereja no topo. Não fui eu que inventei a expressão que até se usa fora de contextos alimentares.
Já no ano novo quando é para pedir desejos às passas, uma pessoa ou tem uma lista, ou como raio se há-de conseguir formular doze desejos em doze segundos? Sempre a pressão do tempo e das vontades!
Houve um ano que pedi apenas - discernimento - e em contra-senso enfiei-as todas na boca de uma vez.
Também peço desejos aos dentes-de-leão, às estrelas cadentes e às libélulas.
E às vezes, à vida. O que me move, é acima de tudo, o ritual, a sinergia que se cria ao selar um pacto com a natureza. Adoro rituais, apesar de saber que muito mais importante que os desejos é a capacidade de aceitação - isso sim - uma verdadeira benção conseguir atingir.
Há muitos anos atrás desejei ter uma menina. Queria muito uma parceira que herdasse os meus vestidos e habilidades culinárias e compreendesse os olhares cúmplices dos segredos femininos. 
Ao contrário das expectativas fui agraciada com dois meninos e isso ensinou-me que as cumplicidades ou segredos não têm género e que as heranças passam de forma natural e voluntariamente. Já os vestidos, nem por isso, mas que importa, a roupa?
Aprendi também que às vezes o que se recebe é melhor ainda que o que se desejou.
Não sei de quem terei herdado a paciência para descaroçar um quilo de cereja para fazer uma tarte, isto se sobrarem, porque a cada uma que meto na taça, são duas que meto na boca. Mas uma vez mais, é todo um processo necessário para obter o resultado pretendido e, ainda que esperar e tarefas minuciosas não sejam o meu forte em todos os outros enquadramentos da vida, na cozinha eu compreendo o tempo que é preciso, como se fossemos um só. 

quarta-feira, 6 de maio de 2020

Verdade e consequência


É do senso comum que quando nos sentimos felizes o tempo corre e quando nos falta alguma coisa, rasteja.
Isto para os humanos, claro. A espécie da eterna insatisfação. Aposto que tudo o que plantei na terra não precisa de horas ou minutos, só de criar raiz, alimento, sol e água. Que inveja das plantas, às vezes! Bem, também precisam de mimo, algumas. Nisto são como as pessoas. Umas crescem nas piores condições e privadas de tudo o que nos parece fundamental e ainda assim dão frutos doces só para mostrar o que valem. Outras precisam de mais substrato e que lhes afastem tudo o que é evasivo. Somos mesmo farinha do mesmo saco, deduzo eu, enquanto arranco ervas daninhas à volta dos coentros. Cresceram num instante e já consigo apanhar um molho valente para fazer uma sopa. Só comecei a gostar-lhes do sabor depois do Sebastião nascer. Curiosamente, ele nem os aprecia muito. Dado adquirido - parir transforma-nos não só o abdómen mas também o cérebro e o palato.
E passei por um momento que não tem mesmo nada a ver comigo por causa do raio dos coentros.
Há um filme giríssimo que se chama "A invenção da mentira". O argumento gira à volta de nenhum personagem ter filtros e todos dizem tudo o que pensam, mesmo tudo! Até que um dia no meio de uma enorme aflição alguém consegue finalmente não dizer a verdade. Só visto!
Sei que há pessoas que se identificam com o que eu escrevo, eu identifiquei-me com este argumento e percebi um bocadinho do que sofrem os que lidam comigo. Às vezes até consigo usar filtros coloridos para suavizar o impacto monocromático da franqueza extrema. Não sei se resultará, a técnica. Mas mentir, não sei! E o rapaz, há quase 30 anos atrás, devia ter pensado nisso quando me levou a jantar com os pais.
Pedi uma açorda, mas que não viesse com coentros, por favor! Hoje sei que quem não gosta de coentros não pede açorda e pronto! Não faz sentido. É o mesmo que cozinhar uma bolonhesa sem molho de tomate. O que é certo é que me fez sinal para fazer o esforço de comer a dita açorda que por engano saiu da cozinha mais verde que cor de pão, para os pais não ficarem mal impressionados.
O esforço saiu por onde entrou e não foi um espectáculo digno de se ver. No meio desta aflição lá confessei em desculpas que devia estar mal do estômago, porque também é do senso comum que para um coração apaixonado só uma verdade liberta.


terça-feira, 5 de maio de 2020

Raízes


Acordei cheia de inspiração e depois de um demorado pequeno almoço na varanda, sigo para as compras. Saio da praça e faço uma pausa a olhar para as filas de pessoas descontraídas com máscaras no rosto que transmitem uma ilusão de proteção.
Seria assim se fosse noutro tempo? Agora somos menos espertos ou sou eu que sofro a mais de nostalgia?
Assim, parece-me pior a almendra que o cianeto.
É fascinante a sabedoria popular que sinto como uma relíquia de herança genética.
Não são só as lendas, provérbios e lenga-lengas, carregados de conhecimento e experiências de vida ancestrais, são as mézinhas e todos os seus procedimentos e métodos, alguns aparentemente obsoletos mas que funcionam sempre quando acreditamos. Preces, novenas e ritos que passam de geração em geração como uma corrente de proteção familiar inquebrável e altamente eficiente!
De xaropes de cenoura para a tosse, a mentas frescas ou funcho para a digestão, a casca de laranja para as enxaquecas ou a oração ao anjo da guarda para uma noite descansada e o responso a Santo António para encontrar o que se perdeu. A não ser que se perca a cabeça, aí não há santo que nos valha. Sigo para casa que o tempo assim também não me vale e há bolos por fazer. Em breve é dia da Espiga e não me posso esquecer das tradições.
Ao fundo da rua há um parque e ouço baloiços. Gosto do som metálico da corrente que parece queixar-se do ritmo com que é embalada. É um som de memória. A nostalgia outra vez... Pelo caminho ainda roubo umas nêsperas que reinam na estação. Nêsperas, rosas e papoilas encarnadas por todo o lado. Sons e cheiros. Alguém precisa de mais?
Fui comprar beterrabas para o bolo de cacau. Já tenho os dedos todos roxos do sumo que lhes vai saindo ao descascar. É delicioso no meio do processo culinário ficar com mãos cheias de rastos de cores vivas que custam a sair com a água e quase parecem uma fusão.
Sinto-me parte mulher, parte beterraba ou framboesa, curcuma, batata doce roxa e afins. Um perfeito arco íris, hoje, em dia de sol e com cheiro a cacau. Já deixei uma nódoa rosada na toalha de linho bordada pela minha madrinha com tanta devoção... Será a devoção que nos falta? Não que me interesse por bordados, mas é um orgulho preservar com carinho o que alguém quis fazer só para nós. Guardei todas as toalhas, naperons e panos personalizados que me lembram dela e da esperança que tinha em que esse enxoval me tornasse numa dona de casa prendada. Devia escrever receitas para um dia deixar aos meus filhos. Para bordados não tenho jeito, prendada só na cozinha e os bolos de cacau não duram eternamente.

quinta-feira, 30 de abril de 2020

Cry baby

Nunca percebi porque é que quando somos crianças nos é legítima a curiosidade de saber como funciona o mundo e as pessoas - ah, é a idade dos porquês, mas depois, já crescidos soa a parvo perguntar sobre tudo. Como se alguém tivesse aprendido alguma coisa entretanto e nós ainda tivessemos 5 anos...Tive a sina de nascer com esta mente filosófica que às vezes parece uma maldição.
Não basta descascar cebolas! Se nos fazem chorar há-de ser por alguma razão! Lembro-me de ser miúda e estar sentada na mesa da cozinha a ajudar a minha mãe a preparar não sei o quê e ter sentido um verdadeiro momento de inspiração ao olhar para uma cebola. Aposto que isto soa a parvoíce e eu até ainda era uma garota, mas sei que olhava com olhos de ver. -"Olha, mãezinha, as cebolas são tão bonitas! E parece que a parte de fora maior vai abraçando as de dentro cada vez mais pequeninas"
Fiquei fascinada com as camadas e as simetrias enquanto a minha mãe deve ter pensado - "no meio de quatro, deve ser natural uma vir com um parafuso a menos." Acho que ainda hoje quando me vê a chorar ou a rir, porque às vezes tenho verdadeiros ataques de riso ou de choro que nem estranho e me sabem a purga emocional (que é verdadeiramente libertadora), ela ainda pensa e até diz em voz alta, às vezes -"Meu Deus, onde terei falhado?" O meu pai iria compreender. Também era todo emocional e resmungava quando não se sentia compreendido. Eu que sou a mais nova tive menos tempo dele...
Pronto, sou muito contemplativa mas isso ajuda-me a manter a capacidade de ver o melhor nas coisas e nas pessoas. E nós também somos camadas envolvidas numa pele fina, certo? Não libertamos ácido sulfénico quando nos partem ao meio, mas lá temos as nossas defesas. Ainda a semana passada dizia ao meu mais velho que a vida faz-nos crescer em corpo e os tropeços e frustrações nos tornam mais fechados e cautelosos, mas a criança está lá sempre na essência e que sentir assim é uma benção. Ele também olhou para mim com aquele ar -"Whatever"... que chegou de Londres há pouco e ainda vem cheio de tiques na linguagem. Onion bahji, my dear. Cebolinhas que nos vão fazer chorar por mais.

quarta-feira, 29 de abril de 2020

Teremos sempre Paris

Fiz uma jura. Prometi-me que hoje não vou refilar! As lamúrias vão-se entranhando sem querer e o meu cérebro às vezes soa-me a uma velha rezingona. Hoje hei-de conseguir desviar o foco para a beleza! Mandamento do dia - não refilarás!
Até começou bem. Ainda no quente aconchego dos lençóis e em jeito de câmara lenta percebo que está a chover. E isto podia ser logo o primeiro resmungo do dia, mas o som da chuva é capaz de ser o meu som favorito de todos, assim no sossego, quando o dia ainda deixa ouvir tudo do que importa. E hoje eu estou mesmo determinada! A chuva é uma benção e eu levo as juras muito a sério. E com esta determinação faço umas papas de aveia com banana. Tenho que dar tréguas à balança e parar com o café. Preciso mudar o meu ritmo para não empurrar o da vida que decidiu abrandar.
É incrível o quanto nos habituamos a funcionar com o raio da cafeína que em abstinência parece que passámos a noite toda em claro. Já estou a reclamar, pronto! Faço uma cevadinha a sorrir. O riso é indutor e assim volto ao foco, mesmo que não consiga parar de bocejar. Sorrir e bocejar ao mesmo tempo é verdadeiro desafio!
Sento-me a fazer a lista das compras para compor a despensa. Tenho de ir à Vila buscar cogumelos. Vou fazer um festim! Isto transporta-me a um dos episódios da minha vida, grávida do meu filho mais velho a assistir à estreia da Cidade dos Anjos em exibição no cinema em Vilamoura.
Há uma cena no filme em que a Meg Ryan, numa biblioteca lê um excerto de um livro de Hemingway que fala de comida. E eu bem digo que a vida nos vai dando montes de pistas, que no meu caso me iam passando ao lado. Reza assim - "Comi as ostras, que possuíam um forte sabor a água do mar e um leve travo metálico que o vinho branco e fresco ia neutralizando para lhes deixar somente o gosto próprio da sua massa suculenta, e, à medida que ia bebendo o líquido frio de cada concha e o fazia descer com o vinho fresco e bem apaladado, ia deixando de sentir a tal impressão de vazio."
Passou-me ao lado o autor durante a sessão de cinema.
Ponto 1- nunca comi uma ostra na vida.
Ponto 2- não sou fã de vinho branco.
Ponto 3- esta frase bateu-me de tal maneira que no final fui à bilheteira perguntar se sabiam o nome do livro citado no filme.
Ponto 4- Há pessoas incrivelmente boas no mundo e mesmo pacientes e prestáveis.
Estar muito grávida deve ter contribuído. É do senso comum que se têm desejos estranhos. Lá me deram o número de telefone para ligar que iam tomar atenção a esse detalhe na sessão seguinte.
"A moveable feast", traduzido para português "Paris é uma festa".
Como encontrei o livro depois de o procurar incansavelmente numa época em que não era tão simples quanto agora, fica para outra história. Agora vou cozinhar um banquete! 

terça-feira, 28 de abril de 2020

Fibra

Devia beber mais água. Manter o corpo hidratado faz-me sentir saudável. E comer maçãs e apanhar sol quando a chuva me deixa.
Só agora me dei conta que passo a vida a tocar na cara. É comichão nos olhos, no nariz e até nas maçãs do rosto que nem sabia que também se queixavam. Será só agora que sei que não devo?
Hoje sonhei que estávamos a viver um sonho. Um sonho no sonho. Se calhar estamos.
Acordei com a buzina da padeira. Eu e a aldeia inteira! Podem faltar abraços e passeios à beira mar mas não pode faltar a padeira nem o pão.
Estou dividida entre a frustração de não poder fazer nada do que me apetece e a preguiça de não me apetecer fazer nada do que devo. Tenho que fazer sopa! Mas gosto. Muito. O ritmo da sopa funciona como um mantra. Um mantra para uma preparação. É como uma poção mágica de um caldeirão digno de Merlin.
A sopa tem tudo e até as crianças adoram a minha. Que grande vaidade!
O segredo, podia usar o clichet - é o amor. O amor é o segredo para tudo. Na sopa também é o tempo. A cenoura precisa de vagar para amaciar a fibra e aveludar o puré. Cozer muito lentamente, como se nem existisse. Deixar-se ir como num desmaio que faz toda a diferença no resultado da textura. Que poesia, eu na cozinha a pelar raízes! As cenouras são raízes. Há que chamar as coisas pelos nomes. Depois é preciso a simetria, o equilíbrio do palato, com o nabo e a cebola. O resto que vem depois, tanto faz, só acrescenta. Entra tudo na panela sem água, com fio de azeite e magia acontece sem nenhum truque ou ilusão, em perfeita sincronia vegetal.
Estas rotinas dão cor ao dia e ao ânimo. O sol dignou-se a aparecer. Finalmente!
Faço uma pausa na cozinha. Já nem ligo a televisão. Junto os livros por ler, determinada a honrar-lhes o propósito.
-"Mindfulness para totós" - o primeiro da fila. Faço um chá com hortelã fresca.
Sento-me na cadeira lá fora, cheira a flores por todo o lado. As alfaces estão quase boas para colher e para a semana já consigo estrear os espinafres. A horta está linda, apesar dos brócolos terem mais lagartas que folhas. Cansei-me de as mandar embora. Fizemos um pacto. Lá as adoptei à força. Destinei-lhes um pé, os outros são nossos. Pareceu-me justo. Fiquei em paz e ainda nem abri o livro... 

domingo, 26 de abril de 2020

Tisana

Quando acabei o preparatório tive uma psicóloga de orientação vocacional que me fez uns testes para me ajudar a encontrar a rota seguinte. A professora Etelvina Cristóvão, uma querida, com quem ainda troquei algumas cartas depois, acreditava piamente que eu devia seguir a veia criativa, apesar dos resultados dos testes apontarem que tinha mais aptidões para matemática (todavia as notas tinham sido péssimas nesse ano) e raciocínio numérico e para línguas (se calhar já em alusão às de gato ou de veado). A criatividade era a terceira coluna mais alta do gráfico.
Não sei se posso ou devo responsabilizá-la, mas o que é certo é que foi ela que me meteu à frente os formulários de inscrição do Fit Moda, na Rua do Salitre, ainda por cima mesmo ali ao lado da Alexandre Herculano, onde trabalhava a minha irmã Ana.
A Ana é a menina do meio. Somos as três muito parecidas na estrutura, mas a do meio é a mais romântica. Acho que ainda hoje ela sonha que um dia virá um príncipe num cavalo branco que a levará para um dos castelos do país dos felizes para sempre. Um mulherão, ainda assim. Lutadora e com muito pêlo na venta. Condição genética, de certo. Cresci muito com ela. Apesar de termos muitos interesses comuns, é muito mais feminina e vaidosa que eu. A Nita cuida-se e enfeita-se de "tiaras e vestidos de princesa". Eu sempre senti que sou a princesa, o cavalo branco e o príncipe, e que já estou quase sempre num "país feliz". Quando saímos juntas para almoçar e pôr a conversa em dia, ela entra em todas as lojas trend de moda e decoração, tem um incrível sentido estético, a minha do meio, enquanto eu aguardo pacientemente numa Bertrand ou Fnac qualquer a descobrir o que há de novo em música e livros. Eu a ser pseudo intelectual e ela com a beleza e a estética que a alimenta. Um dia ofereceu-me um livro que disse que era muito bom, mas eu, leitora aficcionada e conhecedora, achei que era cor de rosa demais para mim e deixei-o a um canto para não ser bruta e lhe confessar que o meu elevado nível intelectual não se permitia a esse tipo de leitura. "Os Homens são de Marte e as mulheres são de Vénus."
E eu amo mitologia. Isso sim, leitura própria e evolucionista! Passo a dicotomia.
Guardei-o numa fila da estante junto aos livros que só enfeitam e que ficam no esquecimento. É curioso como a vida se encarrega sempre de nos fazer beber grandes chávenas de chá de humildade, o que é bom para a tosse, enquanto nos dá pistas do que importa e que estamos todos tão ligados uns aos outros, mesmo quando nem temos noção do quanto.
Há muitos anos atrás, depois do meu pai morrer passei por uma fase muito dolorosa e isso abalou bastante o meu relacionamento que aparentava mesmo estar a chegar ao fim. Já em aceitação e a pensar que era melhor começar a fazer triagens e a arrumar caixas com pertences, estou de volta dos livros, e do nada, há um que me cai mesmo em cima do dedo grande do pé e de certeza me fez gritar um palavrão enorme e feio do qual não me orgulho! Sentei-me no chão, ainda a praguejar e amaldicionar o ter nascido tão desastrada no meio de contorções e grunhidos, mas lá me decidi a abrir pela primeira vez o livro da Nita. Julgo que às vezes nem são tanto os conteúdos nem todos os detalhes de um cenário inteiro, mas sim a nossa rendição ao que somos e a necessidade urgente de sermos melhores. Li-o. Todo! Tomei notas mentais. E juro que aprendi coisas que nunca ninguém me tinha ensinado. Consciente, decidi testá-las. E por milagre, acaso ou destino, a relação durou mais dez anos. Passei a dar muito mais valor à mana do meio e estar muito mais atenta ao que me cai em cima dos dedos dos pés.

Colina

Hoje acordei com uma canção na cabeça que trouxe dos grupos de jovens, das catequeses ou se calhar do tempo dos escuteiros. Qualquer coisa assim : "Subiremos montanhas sagradas, colinas suadas do amor cristão. Lá no alto, Jesus nos acena, mostrando o caminho da salvação."
Essa fase de adolescência católica acrescentou um vasto reportório ao histórico das minhas bandas sonoras mentais. Não sei porquê esta foi uma das que me ficou. Lembro-me que numa das casas quando os miúdos eram pequenos, chegava a hora de dormir e subiamos as escadas a cantar, um em cada mão, às vezes um na mão e outro ao colo, e às vezes os dois ao colo, mas ainda com fôlego para imaginar montanhas sagradas que nos faziam suar enquanto caminhavamos para a salvação. Era ritual. Como se a canção lembrasse que no fim de um enorme esforço há um alivio, uma recompensa.
Se calhar essa playlist mental tocava na altura com a intenção de incutir os valores de fé, esperança e resiliência que eu queria passar às minhas crias.
Subir escadas até aí era ao som dos Led Zeppelin, que de certeza também cantaram alto e a bom som para eles que é preciso ensinar tudo o que importa.
Há anos para cá que quando subo escadas só me lembro é que devia fazer mais exercício e que fumar é mesmo parvo.
Não me lembro da salvação, nem das montanhas, nem de Jesus que mostra o caminho. Depois de tantos caminhos cheios de pedregulhos e matos por desbravar e outros cheios de desertos, com alguns oásis, é certo, mas com muitos cansaços e desitratações pelo meio, vamos sentindo que ou temos péssimo sentido de orientação ou Jesus se fartou e foi fazer outras coisas.
Neruda diz que é o amor que nos salva. Mia Couto diz que cozinhar é um acto de amor. E alguém muito sábio - Só a música nos pode salvar.
Esta sabedoria colectiva tem os ingredientes que preciso para me alimentar hoje. Amor. Cozinhar. Música.
Vou para a cozinha salvar o meu mundo.

sábado, 25 de abril de 2020

Svatantrya



O meu primeiro momento de liberdade do dia é ser a primeira a acordar. Respirar fundo. Ouço a casa em silêncio e escuto os sons lá fora. Faço torradas e uma caneca cheia de café quentinho. Agarro qualquer coisa para ler.
Segundo momento livre - Espreguiçar! Isto faz-me sorrir.
Sempre senti que tenho muita sorte. A minha mãe diz que feliz é quem feliz se julga. Esta teoria também deve funcionar com a sorte. E de certo que com a liberdade também. Nasci com a Revolução.
Ligo a música - Now we are free. Hans Zimmer.
A associação mental que me ocorre são pássaros. Asas. Voar. Liberdade é voar. Voamos quando nos sentimos felizes. Neste divagar já fatiei os pimentos e já estou a picar cebolas. Se não me tivessem feito chorar ainda andava por ai a bater asas. Uma sorte não me cortar!
Volto à terra do sempre com as pontas dos dedos amarelas da curcuma fresca.
-Caril! O cheiro e o sabor intenso das especiarias fazem-me sentir viva. Nem sinto qualquer afinidade à India. Não é de todo aquele país que está na minha rota de destinos imperdíveis, mas toda a sua gastronomia é inexplicável regresso a casa. Naan, chamuças, pakoras...que festim!
Liberdade é dançar! E dançam, as cebolas, os pimentos, a curcuma, o alho e os coentros. Já cheira. Tive tanta pressa de crescer para ser livre. Liberdade também é responsabilidade. Vou mexendo a panela.
Gosto do ritual. O que hoje damos como certo, foi ontem determinação e coragem.
Tiro a casca da manga que me derrete de macia, nas mãos. O meu pai ensinou-me a escolher as mangas. É preciso perceber a consistência certa, o cheiro, a cor. As avermelhadas são as melhores.
Devia ter cravos no jardim. Junto o leite de côco e envolvo. Os legumes e as memórias. Ontem voltei a tentar pintar as pereiras. Podia ser outra árvore qualquer mas as pereiras são mesmo bonitas e agora estão cheias de flores brancas. São as que me fazem sentido. Se calhar não nasci para pintar, mas hei-de tentar até a imagem que guardo passar pelas tintas. Baixo o lume. O fogo brando faz o resto. Vou plantar cravos. Fazer uma celebração. A liberdade é um estado da mente.
Caril sabe a revolução.



segunda-feira, 20 de abril de 2020

Caramelo salgado

Abril, águas mil. Lembro-me ao chegar das entregas do dia, toda ensopada e a sonhar com lareira a crepitar. A minha tia Evangelina é que era barra em provérbios e ditos populares.
-Chuva e sol, as bruxas estão a fazer pão mole.
Vou acendendo a lareira, não é pão que me apetece fazer. Preciso de uma coisa doce, mas estas coxas de quarentena agradeciam alguma contenção. Há um mês e tal inscrevi-me na contemporânea. Quem canta seus males espanta, mas eu afasto os meus a dançar. Já cheira a azinho a arder no ar. Tem que se aquecer a alma e o corpo. Que se lixem as coxas, tenho montes de laranjas, umas madalenas nunca fizeram mal a ninguém. Logo volto à dança contemporânea...Hum, também posso fazer um molho de caramelo. Um nougat com Nozes de macadamia! A culpa é do dia! Todos os dias são bênçãos, mas há uns que temos de lhes espremer bem a polpa até que saia algum sumo. Não há condições. Aqui até nos deixam o pão quentinho à porta. São tudo desculpas para ficar em casa a engordar para alguma coisa que ainda não sabemos o quê. Mas de barrigas felizes, é certo!
-Maiores olhos que barriga! Lá faço as madalenas e já estou a mexer o caramelo que impregna o ar. Devia encontrar a outra nuvem, aquela que faz dispensar açúcares, onde encontramos o centro. Queimar um incenso, fazer uma meditação, ver se me sai algo que inspire. Isto de inspirar pessoas é uma responsabilidade que pesa mais que a balança. - Há mais marés que marinheiros!
Vou esmagando as macadamias, dividida entre o coração e a razão. Deixo para amanhã o que devia fazer hoje. Hoje, vou fazer como a chuva e cair. No sofá, com madalenas e nougat!

sábado, 18 de abril de 2020

Prelúdio

Há muitos, muitos anos tive um namorado que adorava a minha voz e passava a vida a dizer - Devias fazer rádio.
Eu não vivo sem música. E todas as boas histórias tem um som. Sempre. Há sempre música ou comida no ar!
A vida tem que ter banda sonora mesmo que às vezes seja só dentro da minha cabeça.
Sou a mais nova de quatro e tenho uma memória eficiente, ou tinha, e um conhecimento musical herdado acima da média, que devo ao meu irmão Paulo.
Enfim, parece que reunia as condições necessárias para ter o meu próprio programa de rádio e o dever de partilhar com o mundo do outro lado da antena, a minha voz e o meu bom gosto e conhecimento musical, segundo o rapaz. O amor é cego. Já sabemos. Posto isto, e já completamente convencida, tenho um dos meus impulsos num dia em que vou a passar na avenida de Ceuta (onde era a sede da TSF e da Rádio Energia que já se tinha transformado em FM Radical) e decido estacionar em frente ao edifício e subir ao segundo andar onde peço para falar com o locutor de serviço. Eu tinha uns 21 anos, está bem? É a ternura dos quarenta e a loucura dos vinte.
Subo! O ambiente era informal e, ou movido pela curiosidade ou pelo espanto, o Simões lá me ouviu entre canções da playlist, a confessar entusiasmada e divertidíssima que tinha um namorado que dizia que eu devia fazer rádio e por isso ali estava. Achou-me graça, talvez pela coragem inconsciente, acima de tudo. Convidou-me para participar num programa de domingo com o Jorge Gabriel. E foi daqui, do Ferro Velho e da festa na discoteca mais in dos anos noventa que vim a conhecer o pai dos meus filhos. Ligado à restauração e a cozinhar como um Chef em casa - o melhor que já conheci até hoje - foi-me despertando a vontade de um projecto comum no ramo. E eu apesar de morar sozinha e fazer sempre a minha própria comida estava longe de sentir que tinha nascido para isso. Mas agradou-me a idéia. Porque não? Se calhar, há uma altura para as coisas se revelarem em nós, como aqueles virus - ou serão bactérias? - que temos sempre mas que só se manifestam em determinadas condições. Adiante! O projecto acabou por surgir e a minha função era um género de relações publicas, anfitriã, gestora, patroa. Talvez de tudo isto, tivesse algum jeito para relações públicas quando não estava em fase pré-menstrual ou a lua em cheia. Ou seja, às vezes não tenho jeito nem para as relações nem para publico, pronto.
Quis o destino ou o acaso que nesse projecto trabalhasse para nós uma pasteleira, excelente, por sinal, mas com a qual eu raramente estava de acordo. Vinha de um formato de pastelaria industrial, cake design e essas coisas muito perfeitinhas que não se enquadram nada na minha mente rustica.
As sobremesas têm que despertar as nossas memórias- é isso que a comida deve fazer. A comida e a música, claro. Era a tarte de maçã da minha sogra, o bolo de bolacha da minha tia Melita, o pão de Ló da minha avó Maria do Rosário, o doce de ovos com amêndoas torradas que o meu pai fazia e que dá origem à base das minhas Pérolas. Memórias!
Todos os dias a pasteleira fazia de uma maneira e eu dizia que preferia de outra, por exemplo- uma tarte de maçã na minha cabeça não pode ter um aspecto sofisticado. As maçãs são densas e as reinetas nem devem muito à elegância, são grosseironas, do campo! A tarte tem de ser coerente, brilhar pelos sabores e pelas viagens a que nos transporta até ao tempo em que não se pincelavam os bolos com glaces vendidas em pacotes.
Enfim, a miúda bem se esforçava e quanto mais bonitos e arranjadinhos eram os acabamentos mais eu reclamava. Houve um dia que se fartou e teve a lucidez de me enfrentar e mudar a minha vida… - “Se a Angela nunca está satisfeita com o que faço e até sabe o que quer, porque não faz você?”
E foi assim, com um “acorda e faz tu” que comecei de volta dos fornos e das batedeiras, com aquela sorte de principiante de quem não faz a menor ideia do que está a fazer, mas a não querer dar parte fraca e sempre com muita audácia, como em quase tudo na minha vida.
E curiosamente sem estar muito preocupada com as regras e com aquele rigor que é do senso comum que tem a pastelaria, lá fui arriscando; e melhor que tudo, as pessoas iam gostando mesmo do que eu fazia. Fui abandonando as relações publicas e aprofundando cada vez mais a relação com o açúcar e os ovos, o chocolate derretido e as combinações espontâneas e improváveis.



sexta-feira, 17 de abril de 2020

Sinais

Hoje fui ao correio enviar cartas. Estou com a sensibilidade à flor da pele. De onde virá esta expressão, a propósito? Mas pronto, sinto saudade e apetece-me enviar carinho a quem gosto de todas as formas possíveis. Fiquei à porta, só entra uma pessoa de cada vez. O correio segue, mas demora a chegar. Faz-se o que se pode. Enquanto espero distraio-me com os titulos dos livros no balcão. Os olhos fixam uma capa azul celeste - "Sinais, o universo fala consigo. Saiba como compreender."
Começo a viajar. Eu acredito em sinais, o que conta é o que acreditamos, mesmo que sejam anjos, fadas ou no pai natal. Se acreditamos, existe para nós e dá-nos sentido e isso basta. Chega a minha vez. Sigo o impulso, estou a transbordar de impulsos contidos e enquanto entrego as cartas, agarro o livro. Na contra capa leio um comentário de um autor que me é muito familiar e que me iniciou nestas coisas de acreditar no invisível - isto só pode ser um sinal!
Paguei o livro e os selos e segui para o carro com a sensação de quem encontrou um mapa de tesouro. Sento-me e faço o que é habito quando tenho um livro novo, abro aleatoriamente e vejo o que me diz. Isto normalmente determina se a leitura será pausada ou compulsiva. Outro sinal...
Provavelmente a quem não liga a acontecimentos que não são validados cientificamente tudo isto não passará de pura fantasia ou alucinação. Mas basicamente o que me importa é o que resulta comigo e eu sou feliz com as linhas que me cosem. Há catorze anos, logo depois da chegada da primavera, o meu pai foi para o outro plano. Naturalmente e sem nada que nos preparasse antecipadamente, foi de uma tristeza incomensurável para todos. E a mim dá-me sempre uma enorme aflição não conseguir aliviar o sofrimento dos que amo. À boa maneira de quem tenta sempre procurar a ordem no meio do caos, imprimi para a minha mãe e para os meus irmãos um texto que saquei da net que se chama - A morte nada é. Atribuido a Henry Scott-Holland e a mais uma carrada de autores. Irrelevante, aqui. O conteúdo era o que me interessava. Colei uma foto do meu pai a sorrir e tive esperança que de alguma forma conseguiria aliviar as tristezas. Hoje, passados todos esses anos, esse texto está na página aleatória que acabo de abrir.

quinta-feira, 16 de abril de 2020

Posalosa

É curioso, ao longo da nossa vida termos detalhes que nos acompanham como sombras, ou luzes - depende da perspectiva - mas ao mesmo tempo irmos sofrendo metamorfoses noutros aspectos. Será aleatório o que muda e o que mantemos? Seremos como árvores com um tronco inteiro, que libertam folhas que já não servem para dar lugar a outras? Afinal, florescemos e deixamos frutos das nossas experiências por ai...Por falar em frutos, hoje estou de volta da horta. Chove aquela chuva miudinha que não acrescenta nem alivia, só para mostrar que cai porque pode. Planto acelgas que nos mercados bio das cidades são vendidas a peso de ouro. Aqui nascem à beira da estrada. De certeza que não escolhem onde criam raizes e não têm crises existenciais nem diálogos internos filosóficos. Faz um mês e tal deste ritmo e eu sinto-me mais ou menos como em miúda quando as férias grandes pareciam durar mais que o resto do ano e chegava ao fim de Agosto cheia de vontade de voltar à escola e à rotina.
Nem parece meu, é verdade.
Se calhar, isso mudou. Por outro lado, fiquei mais corajosa. Era uma grande medricas em miúda, vicissitudes de ser a mais nova de quatro, cheia de mimos por todos os lados.
A minha professora de estilismo passava a vida a deixar notas nos meus croquis - Solte-se! Arriscar mais!! E aqui já era bem mais crescida. Será a coragem que dá criatividade ou a criatividade que traz coragem? Tenho a certeza que estão ligadas, mas é só uma das minhas teorias Angelicas de um manual de vida que só a mim é útil. Acho que comprovo diariamente essa teoria no departamento em que me é tão fácil improvisar que já o faço de olhos fechados. Cozinha! Deu-me para acelgas recheadas com arroz de feijão. Inspiração da horta e da cabeça fria da chuva. As coisas boas é que dão sentido ao dia. 

terça-feira, 14 de abril de 2020

A árvore

E se a vida for só isto?
Este é o pensamento que me atormenta nos últimos dias.
E se não passa mesmo de um castigo divino para começarmos a dar valor ao que importa? Eu achava que já dava...
O que é certo é que as prioridades estão a mudar. A todos os níveis.
Antes de pensar no que vou fazer para o almoço, tenho que me lembrar que preciso não me esquecer de sobreviver.
Sento-me lá fora numa pausa a ouvir o silêncio e a reparar na enorme sorte que tenho tido. Todos os dias respiro fundo e tento perceber se o ar me contínua a fluir leve ou se começa a pesar. Estou bem. Mais um dia. Volto a respirar fundo e vou para a cozinha tratar da massa folhada para rechear com mascarpone e framboesas. O transe culinário, ajuda-me a desviar o assunto. Olho no reflexo da janela e descubro entretanto que as minhas sobrancelhas no formato original põem as da Frida Khalo a um canto. Há tantos anos que são contornadas, que já nem sei (e ainda bem) como são na génese. Contornadas, mas não por mim, que percebo a falta de jeito que tenho para as tarefas de cuidados femininos.
Tenho de corrigir isso!
O pensamento foge-me outra vez.
Não são só os miúdos que estão a ter aulas em casa. Nós parece que também. Estamos ou não a aprender a viver diferente, a cortar hábitos e padrões?
Se isto não é uma escola não sei o que será. Custa-me mesmo é cortar nos abraços e nos beijos. Será que também vamos aprender novas formas de manifestar o afecto sem o toque? Preferia cortar nos hidratos de carbono.
Sorte a dos bichos que não sofrem com estas regras e se rebolam sem preocupações.
Já cheira a massa folhada que alourou entretanto. Começou a trovejar. Ouço o carteiro. Recebi um postal! Confesso que sinto este regresso às tradições bonitas como uma benção. É bom ter o essencial. O essencial é muito menos do que julgamos. E é bom ler em papel e não receber só contas e promoções do supermercado.
Um postal manuscrito é uma impressão digital que nos entra pela caixa do correio. Sente-se a presença de quem escreve, além da voz, em cada palavra. Um abraço de papel de um ramo da mesma árvore.

Coração na lua

O dia amanhece nublado. Será só aqui ou também no resto do mundo? Aqui é um mundo. À parte do outro.  Já nem me lembro bem o ano exacto em q...